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Meritocracia não existe?
| Foto: Michal Navrat/Pixabay

“Os intelectuais não dispõem apenas de opiniões isoladas sobre uma variedade de assuntos. Por trás de suas opiniões, geralmente se encontra alguma forma de concepção articulada sobre o mundo, uma visão social […]. A visão à qual a maioria dos intelectuais de nossos dias tende a aderir tem características muito próprias, que a distingue de outras visões predominantes em outros segmentos da sociedade contemporânea e pretérita, tanto em relação às elites quanto em relação às massas.” (Thomas Sowell, Os intelectuais e a sociedade)

A ideia de um “sistema de recompensa e/ou promoção [...] fundamentado no mérito pessoal” numa sociedade eivada de privilégios a uns poucos é algo, no mínimo, questionável. Se pensarmos nas enormes desvantagens que as populações mais pobres têm em relação a educação, moradia, saúde, alimentação, segurança, ou seja, as condições socioeconômicas degradantes a que são submetidas e que dificultam – quando não impedem – uma mínima mobilidade social, pensar em mérito pode parecer sadismo. Sem contar o preconceito, a discriminação social/racial sofridos pela imensa maioria da população diante de um país que sempre prezou pelo status e que enxerga virtude num estetismo vulgar. Tudo isso torna a ideia de meritocracia, de fato, falaciosa.

No entanto, temos um problema: não foram aqueles que, atualmente e de certo modo, advogam pelo famigerado conceito que o criaram. Mas isso também não é novidade. Termos como “neoliberalismo”, “democracia racial” e “racismo reverso” também não foram criados por aqueles aos quais se lhes atribuem de forma pejorativa. Curiosamente, esses termos foram criados por seus críticos a fim de rotularem determinadas ideias e posições políticas. E mais: há um abismo intransponível nesse debate, pois está fundamentado, como diz Thomas Sowell na epígrafe deste artigo, numa visão de mundo. Não é possível sequer discutir o assunto se o termo não ultrapassa a barreira conceitual.

A ideia de uma sociedade igualitária só pode nascer da eliminação da liberdade, o que seria verdadeiramente desastroso – inclusive para os mais pobres

De fato, como eu mesmo já defendi aqui, nesta Gazeta do Povo, o conceito real de mérito “pode ser tanto uma virtude de saída quanto de chegada na realização de algo. Pode ser a capacidade que indivíduos têm de superar as adversidades a fim de atingirem seus objetivos como o resultado desse esforço. Não tem a ver com uma mera ideologia da competição a separar quem tem de quem não tem condições no início de um empreendimento. O mérito é, muitas vezes, uma vocação, um bem interior que não necessita de condições exteriores”. Óbvio que, na visão de mundo de seus críticos, tal perspectiva de mérito jamais tornaria o mundo mais igual, pois algumas barreiras jamais seriam transpostas e aqueles que detêm o poder só fariam perpetuar sua posição e influência. Nem mesmo a igualdade de oportunidades seria capaz de diminuir o abismo que há entre aqueles que já iniciam sua vida cercados de privilégios daqueles que, com um esforço descomunal, conseguem conquistar algo.

Pois é exatamente ali, na ideia de um mundo mais igual, que mora o perigo. O sociólogo britânico Michael Young, militante de esquerda e criador do termo “meritocracia”, em sua distopia The rise of meritocracy, tinha como objetivo “criticar governos que desistiram do objetivo de uma verdadeira igualdade social”. Ou seja, o sistema de competição e privilégios criado na ficção de Young não pretendia só denunciar a substituição de um sistema hierárquico baseado nos privilégios hereditários por um que promoveria as pessoas através de testes de capacidade – que, obviamente, ainda privilegiaria os bem-nascidos, melhor educados etc. Young era um ideólogo da igualdade como um direito.

Os problemas de tal concepção já foram devidamente expostos por Tobias Barreto – o nobre filósofo (negro, para os padrões atuais) sergipano, que é categórico: “A igualdade só pode obrar como tendência, não pode obrar como direito [...]. Ao passo que a liberdade é uma força individual, força ativa e consciente, a igualdade é apenas, como vimos, um pendor social; e ao passo que as leis da liberdade são subjetivas, as que regulam a igualdade são objetivas e estranhas à vontade do indivíduo. A democracia sensata que proclama a liberdade como seu magno princípio não pode prometer a igualdade senão como resultante de todas as forças contrabalançadas no seio da sociedade; não quer bater o cordel na cabeça do povo, não quer passar a régua na superfície dos mares”. (para maior aprofundamento, leia aqui).

Ou seja, a ideia de uma sociedade igualitária só pode nascer da eliminação da liberdade, o que seria verdadeiramente desastroso – inclusive para os mais pobres. Um país que, em vez de buscar a melhoria de condições para todos dentro de um sistema de conquistas meritocráticas, buscasse a igualdade compulsória terminaria, fatalmente, numa tirania. A sociedade como um Leito de Procusto a amputar os mais impetuosos e inteligentes e a esticar os menos.

O prêmio Nobel de Economia Friedrich Hayek, em seu clássico O caminho da servidão, analisa a ideia de se substituir um sistema de competição pela planificação compulsória. Ele afirma que o que está em jogo “é a escolha entre um sistema em que a vontade de poucos decida a quem caberá isto ou aquilo e outro em que essa parcela dependa, pelo menos em parte, da habilidade e iniciativa dos indivíduos e, também em parte, de circunstâncias imprevisíveis”. As circunstâncias incluem ajuda da família, de terceiros, a sorte (ou Providência) e condições favoráveis – o famoso estar no lugar certo na hora certa. Ou seja, o mérito não é só uma conquista individualista, como dizem seus detratores. Uma grande quantidade de variáveis coopera para o sucesso (ou fracasso) de alguém. Obviamente que o esforço individual tende a recompensar, mas outros fatores concorrem para o resultado. Hayek complementa:

“Sem dúvida, no regime de concorrência, as oportunidades ao alcance dos pobres são muito mais limitadas que as acessíveis aos ricos. Mas mesmo assim em tal regime o pobre tem uma liberdade maior do que um indivíduo que goze de muito mais conforto material numa sociedade de outro gênero. No regime de concorrência, as probabilidades de um homem pobre conquistar grande fortuna são muito menores que as daquele que herdou sua riqueza. Nele, porém, tal coisa é possível, visto ser o sistema de concorrência o único em que o enriquecimento depende exclusivamente do indivíduo e não do favor dos poderosos, e em que ninguém pode impedir que alguém tente alcançar esse resultado.”

O mérito não é só uma conquista individualista, como dizem seus detratores. Uma grande quantidade de variáveis coopera para o sucesso (ou fracasso) de alguém

Ou seja, se o mundo, como está organizado, privilegia alguns poucos em detrimento de muitos, as condições para que uma grande parcela desses muitos – caso as condições gerais sejam, de fato, melhores – conquistem espaços sociais e a prosperidade não estão encerradas. Exemplos abundam na história. Não se trata de todos ficarem bilionários como aquele transitório 1% que detém boa parte da fortuna do mundo, mas de perceber que, num sistema de trocas voluntárias, a produção é o motor da geração de riqueza. Hayek argumenta de maneira bastante convincente:

“Nossa geração esqueceu que o sistema de propriedade privada é a mais importante garantia da liberdade, não só para os proprietários, mas também para os que não o são. Ninguém dispõe de poder absoluto sobre nós, e, como indivíduos, podemos escolher o sentido de nossa vida – isso porque o controle dos meios de produção se acha dividido entre muitas pessoas que agem de modo independente. Se todos os meios de produção pertencessem a uma única entidade, fosse ela a ʻsociedadeʼ como um todo ou um ditador, quem exercesse esse controle teria poder absoluto sobre nós. Quem duvidaria que um membro de uma pequena minoria racial ou religiosa seja mais livre sem nada possuir – no caso de outros membros de sua comunidade terem propriedades e, portanto, estarem em condições de empregá-lo – do que o seria se a propriedade privada fosse abolida e ele se tornasse possuidor nominal de uma parte da propriedade comum? Ou que o poder exercido sobre mim por um multimilionário, que pode ser meu vizinho e talvez meu patrão, é muito menor que o do mais insignificante funcionário que exerce o poder coercitivo do Estado e decide em que condições poderei viver ou trabalhar? E quem negará que um mundo em que os ricos são poderosos ainda é preferível àquele em que só os poderosos podem adquirir riquezas?”

Por isso que, mesmo sendo a tal meritocracia um sistema de concorrência que privilegia aqueles que, na saída, já possuem imensas vantagens, é absolutamente preferível a outro modelo que, a fim de diminuir a desigualdade, produza injustiça.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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