“Não fazem por fome, mas por grande ódio e inveja; e quando na guerra combatem, gritam um para o outro por grande ódio: ʻDete immeraya schermiuramme beiwoeʼ, ʻa ti sucedam todas as desgraças, minha comidaʼ. ʻDe Kange Juca cypota kurineʼ, ʻeu quero ainda hoje cortar a tua cabeçaʼ. ʻSche innam me pepicke keseaguʼ, ʻpara vingar a morte de meus amigos, estou aquiʼ. ʻYande soo sche mocken sera quera ossarime rireʼ etc., ʻtua carne será hoje, antes que o sol entre, o meu assadoʼ. Tudo isso fazem por grande inimizade.” (Hans Staden, Viagem ao Brasil)
Num artigo de 10 de agosto de 2018, fiz uma crítica ao general Hamilton Mourão, então candidato à vice-presidência, por um discurso racialista (no sentido de atribuir características inatas aos diferentes povos) a respeito de nós, brasileiros. Na ocasião, numa palestra na Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul (RS), Mourão disse que nós “temos uma herança cultural, uma herança que tem muita gente que gosta do privilégio (...) Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem (...) é oriunda do africano”.
O que é estranho nas palavras do ex-vice-presidente é o caráter contraditoriamente determinista do que ele chama de “cultura”. A imensa diversidade cultural dos (e entre os) povos, bem como a falta de características genéticas que nos diferenciem para além dos traços fenotípicos acidentais (cor da pele, cabelo, altura etc.), não nos permite fazer esse tipo de distinção sobre comportamentos que o general-político fez. O que somos enquanto brasileiros se deve a uma série de fusões, acomodações, reinvenções, circunstâncias, inculturações e aculturações que não podem ser totalizadas em fórmulas preconcebidas.
Alguns fatos e dados marcantes, aliados a seus prováveis desdobramentos na história, podem nos fornecer algumas pistas de nossa imaginação moral
Entretanto, a partir do complexo histórico de fatos, dados e relações que ocorreram e concorreram para a formação do povo brasileiro, é possível traçar não nossas características “culturais” amalgamadas dos vícios dos povos que nos formaram, mas nosso modo de ser e nossa visão de mundo. Ainda que não seja possível determinar precisamente os fatores que nos fizeram ser como somos, alguns fatos e dados marcantes, aliados a seus prováveis desdobramentos na história, podem nos fornecer algumas pistas de nossa imaginação moral.
A primeira influência parece remontar aos nossos primórdios. Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral que chegou ao Brasil em 1500, em sua carta ao rei dom Manuel I – a “Certidão de Nascimento” do Brasil – descreve o território descoberto como uma terra inóspita, cheia de amáveis silvícolas in natura, e uma série de interações pitorescas que vão desde a troca de “presentes” até atitudes miméticas da devoção dos portugueses e a resistência prudente para mostrar aos recém-chegados o seu local de moradia. A cena mais curiosa desse primeiro contato é a de dois indígenas que, ao serem levados à nau de Cabral, após dispensarem a comida e a bebida que lhes foi oferecida, e demonstrarem algum interesse em relação aos objetos que lhes foram apresentados, simplesmente deitaram, sem qualquer constrangimento, no chão do navio português e dormiram.
Tal visão, edênica em toda a linha, nos apresenta um povo aparentemente dócil, curioso, não muito dado a cerimônias – a cena da indígena que, coberta com um pano para que assistisse à missa, “ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir”, é engraçada e singela ao mesmo tempo –, que se integrou aos portugueses de maneira muito natural, permanecendo nessa condição até que estes partissem para as Índias, pouco mais de uma semana depois; não sem deixar aqui dois degredados com os indígenas a fim de “aprenderem bem a sua fala e os entenderem”. Essa singeleza, essa confiança desconfiada, esse comportamento mimético – “e quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós” – e festivo, é algo nosso.
Outro fato bastante revelador da carta é o pedido absolutamente inusitado que Caminha faz ao rei, num post scriptum, solicitando a este que mandasse “vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro”, jovem criminoso que havia sido degredado por assalto à mão armada e de quem a filha única do escrivão era esposa. Sabe-se que o rei poderia, como atualmente o presidente pode, conceder graça especial a um condenado. Não se sabe qual era a pena de Jorge de Osório – se já a havia cumprido ou mesmo se era perpétua – e nem há quanto tempo ele a cumpria no africano país insular. Mas o pedido de Caminha parece inaugurar a simbiótica confusão que nossos políticos fazem entre o público e o privado, e o uso de suas prerrogativas de poder e prestígio em benefício próprio. Pedir pelo próprio genro na carta que comunicava o Descobrimento foi, talvez, a oportunidade encontrada pelo fidalgo de chegar ao rei, de quem, provavelmente, não era íntimo. Ao que tudo indica, o jeitinho brasileiro já era português.
Um segundo relato, estarrecedor, que põe abaixo a visão de bom selvagem dos indígenas que aqui viviam e que, de certo modo, fala de nós outros, nos veio pelo explorador Américo Vespúcio, que esteve aqui em 1501, e, em sua obra Quattuor Americi Vesputti Navigationes (“Quatro Navegações de Américo Vespúcio”), publicada em 1507, narra suas aventuras marítimas. Deixemos que ele nos conte – a citação é longa, mas inescapável:
“No sétimo dia, dirigindo-nos outra vez à terra firme, percebemos que aquela gente trouxera consigo as mulheres. Assim que chegamos, logo enviaram muitas esposas para falar conosco, embora não estivessem inteiramente seguras a nosso respeito. Percebendo-o, concordamos em enviar até elas um de nossos jovens, que era valente e ágil, e para torná-las menos temerosas entramos nos navios. Assim que desembarcou, misturou-se entre elas, que, circundando-o, tocavam-no e apalpavam-no, maravilhadas por ele: eis que do monte vem uma mulher portando uma grande estaca, aproxima-se do jovem e, pelas costas, deu-lhe tamanho golpe com a estaca que, imediatamente, ele caiu morto ao chão. Num instante, outras mulheres o pegaram e pelos pés arrastaram-no ao monte. Os homens que ali estavam, descendo à praia com arcos e flechas, puseram-se a disparar e infligiram tal terror em nossa gente – os batéis em que estavam resvalavam na areia ao navegar, não podendo fugir com rapidez –, que ninguém então se lembrou de pegar em armas, de modo que muitas flechas eles dispararam até que desferimos quatro tiros de bombarda sem atingir ninguém. Ao ouvir o estrondo, todos em fuga correram de volta ao monte onde estavam as mulheres a esquartejar o jovem que haviam matado, enquanto nós olhávamos em vão, mas não era em vão que nos mostravam os pedaços que, assando num grande fogo que tinham aceso, depois comiam: também os homens, fazendo-nos sinais semelhantes, davam a entender que haviam matado e assim comido outros dois cristãos nossos. E exatamente por isso acreditamos que falavam a verdade. Esse ultraje ofendeu-nos a fundo, pois vimos com nossos próprios olhos a profanação com que trataram o morto.”
Temos uma imaginação moral alimentada por séculos de relações, dados, fatos, informações e desinformações que moldaram o nosso modo de ser e pensar e nossa maneira de nos relacionarmos
Dizem que Vespúcio era dado à fantasia, de modo que não sabemos o quão verdadeiro é esse relato. Entretanto, a antropofagia de determinadas tribos indígenas que habitavam o Brasil é bem conhecida e documentada (veja os casos de Hans Staden, Anthony Knivet e do bispo Pero Sardinha), de modo que, na pior das hipóteses, o critério de verossimilhança dá conta de fortalecer a nossa análise. Sem contar que, ainda que os relatos sejam fantasiosos, durante muito tempo foram considerados verdadeiros e alimentaram o imaginário de gerações a respeito do Novo Mundo. Agora, a pergunta que não quer calar é: o quanto há daqueles tupinambás antropófagos em nós? O quanto temos nós dessa violência ritual sanguinária? Com uma pesquisa rápida o leitor pode se certificar disso – um exemplo, aqui.
Óbvio que não podemos esquecer o elemento africano, que, apesar de quase totalmente reduzido à escravidão por séculos, não deixou de ser um dos grandes responsáveis pela construção de nosso país. Entretanto, em nossa cultura foi assentada apenas a ideia do africano como um bárbaro incivilizado – uma “peça”, como diziam os traficantes dʼalém-mar. A imagem do negro como inferior, indolente, dado a paixões reprováveis, se solidificou no imaginário brasileiro e ajudou a sustentar a violência da escravidão por séculos.
Nem os portadores da piedade cristã, que deveriam, através de um olhar bíblico, ver todos os seres humanos como imagem e semelhança de Deus, escaparam de tal distorção. Jorge Benci – sobre quem já falei nesta Gazeta do Povo –, padre jesuíta que viveu no Brasil no fim do século 17 e escreveu uma das obras mais infames para, supostamente, defender o tratamento humanizado ao escravo, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, disse “que os Brancos, para serem bons mestres da arte de pecar, necessitam de lições mui repetidas, e, por isso, é necessário que frequentem por largo tempo as classes do ócio; e os Pretos não necessitam de muito tempo. Com quatro dias de lição ficam mestres em artes e doutores da malícia”.
Os testemunhos e os argumentos incontestes de Gilberto Freyre, em Casa-grande & Senzala, ao dizer que “os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos”; e do pintor, abolicionista e fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes, Manuel Querino – que, em O colono preto como fator da civilização brasileira, afirmou ter sido “o trabalho do negro que aqui sustentou por séculos e sem desfalecimento a nobreza e a prosperidade do Brasil” –, não foram suficientes para nos livrar dessa imagem desfavorável do negro que ainda povoa nossa cultura.
E então temos, diferentemente da afirmação de Mourão, não um determinismo biológico racialista disfarçado de cultural, mas uma imaginação moral alimentada por séculos de relações, dados, fatos, informações e desinformações que moldaram o nosso modo de ser e pensar e nossa maneira de nos relacionarmos. O estetismo, o impulso carnavalesco, a quase incapacidade de avançar seriamente em nossos propósitos, de não passarmos, quase nunca, da acochambração e do jeitinho, me faz sempre lembrar de uma afirmação, feita por um querido amigo, enquanto lia avidamente as Cartas Jesuíticas: “no fim das contas, ainda somos aqueles tupinambás que os portugueses encontraram aqui no século 16”.
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