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Cena do filme “Mentes perigosas”.
Cena do filme “Mentes perigosas”.| Foto: Reprodução/Buena Vista Pictures

“Se você ensiná-lo a ler [disse o senhor Auld], ele vai querer saber como escrever; e tendo conseguido, fugirá” […]. “Muito bem”, pensei, “o conhecimento torna uma criança inapta para ser um escravo”. Eu instintivamente consenti com a proposição; e a partir daquele momento entendi o caminho direto da escravidão para a liberdade. (Frederick Douglass)

Terminei meu artigo da última semana com uma pergunta incômoda: Como garantir educação para todos – e de qualidade – se nem todos querem estar na escola? Apesar de parecer inapropriada, é uma pergunta séria, pois é a própria Constituição que garante, em seu artigo 208, fruto da emenda constitucional 59/2009, “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria”. É curioso que o projeto de lei que gerou tal emenda – a PEC 277/2008, transformada na EC 59/2009 – teve origem numa discussão burocrática que tratava do fim gradativo da Desvinculação de Receitas da União (DRU) sobre os recursos da educação. O então deputado Rogério Marinho redigiu um substitutivo que aumentava a idade da educação obrigatória até os dezessete anos. Mas, de acordo com uma reportagem da época ,“a inclusão dessas medidas tem como objetivo direcionar a verba atualmente destinada a DRU, cerca de R$ 9 bilhões por ano”. Ou seja, uma alteração meramente econômica cujos efeitos práticos – um deles, por exemplo, a quantidade absolutamente antipedagógica de 40 alunos por sala de aula – não foram sequer colocadas em discussão. Disse Marinho, à época: “As alterações foram feitas para dar foco ao dinheiro que anteriormente era desvinculado”.

O dilema que se impõe, prezado leitor – já que, como diz o ditado, Inês é morta – é como cumprir apropriadamente a Constituição e o ECA – que, em seu artigo 54, também garante o “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria, e a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio” –, se a tarefa inglória, que desemboca, fatalmente, nas mãos dos professores, é lidar não só com uma quantidade absurda de alunos em sala de aula – quase 60 milhões de menores de dezoito anos, mais de 50% em escolas públicas –, mas também com um número não desprezível de alunos que não desejam estar na escola e, com isso, prejudicam o processo educativo daqueles que efetivamente, querem estudar.

A educação compulsória é um tema controverso, pois, mesmo que todos tenhamos consciência da importância da educação formal, sabemos – ainda que não admitamos – que há pessoas que simplesmente não gostam de estudar. Dom Lourenço de Almeida Prado, monge beneditino e educador que trabalhou por quase cinquenta anos como reitor do prestigiado Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, diz que “o direito à educação é um direito natural, um direito que decorre de uma exigência da natureza. Não é um direito concedido pelo Estado ou pela sociedade, mas uma obrigação destes em face do direito natural”. Ou seja, expande a máxima aristotélica que diz do homem como um ser que “tende ao saber”. No entanto, não é possível despertar o desejo potencial pela educação “sem esforço, sem alguma medida coercitiva, imposta inicialmente pelo exterior, até que se tenha aprendido a ter a iniciativa de agir bem por si mesmo”. O problema é que os burocratas da educação julgam ser possível “investir” em educação numa sociedade moralmente degradada – muitas vezes, por eles mesmos, cujos investimentos mal geridos, aliados a uma pedagogia romântica (quando não, maligna), geram resultados inversos dos desejados. Mas voltarei a esses aspectos no próximo artigo; antes quero voltar ao tema da educação obrigatória, que me parece, em sentido relativo, uma supressão da liberdade individual.

A discussão se torna mais problemática quando analisamos o ensino médio, pois já não estamos falando de alfabetização, ou mesmo de erradicação do analfabetismo

Murray N. Rothbard, o famoso economista libertário da Escola Austríaca de Economia, escreveu um livro interessante sobre o tema, Educação: livre e obrigatória (LVM), no qual discorre sobre o caráter autoritário da educação compulsória. Rothbard inicia ampliando o sentido de educação, pois, de fato, “todo [...] processo do crescimento, de desenvolver todas as facetas da personalidade do homem, é sua educação. É óbvio que uma pessoa adquire sua educação em todas as atividades de sua infância; todas as horas em que está acordada são gastas no aprendizado de uma forma ou de outra. É claramente absurdo limitar o termo 'educação' para um tipo de escolaridade formal. A criança está aprendendo a todo instante”. Com isso cria o ambiente propício para perguntar, adiante: “Se todos estão em constante aprendizado, e cada vivência da criança é sua educação, por que a necessidade de educação formal?”

Defendida por muitos educadores e intelectuais, a educação compulsória tem, quase sempre, a intenção de diminuir o analfabetismo na sociedade com vistas ao progresso. Alguns encontram sua sustentação moderna em Martinho Lutero, o reformador, que, segundo Rothbard, “repetidamente requisitou que as comunidades estabelecessem escolas públicas e fizessem com que a frequência fosse obrigatória”. Isso é verdade. Mas é preciso que se faça uma ressalva aos motivos alegados pelo economista anarcocapitalista que, num arroubo de anticristianismo – ou, mais propriamente, de antiprotestantismo – diz que Lutero e os reformadores “defenderam a educação obrigatória para todos como meio de inculcar toda população com suas opiniões religiosas próprias, como uma ajuda indispensável na efetiva 'guerra contra o diabo' e seus agentes”. Mas, na verdade, os motivos de Lutero eram legítimos e estão muito bem explicados tanto em sua carta Aos conselhos de todas as cidades para que se criem e mantenham escolas cristãs, de 1524, quanto em sua Prédica para que se mandem os filhos à escola, de 1530.

A preocupação fundamental de Lutero era que, com o declínio das ordenações católicas, os pais não mais mandassem os filhos à escola – pois esse era, basicamente, o motivo pelo qual as pessoas estudavam, para se tornarem sacerdotes – e a difusão do conhecimento, inclusive da Bíblia, entrasse em declínio. Tanto é que ele inicia a primeira exortação dizendo que “as escolas estão no abandono. As universidades são pouco frequentadas e os conventos estão em declínio”. As alegações dos pais, segundo ele, são fruto da negligência para com os filhos, pois eles diziam: “que haverão de estudar e não podem tornar-se padres, monges e freiras? Que aprendam algum ofício com o que possam sustentar-se”. No entanto, apesar dele defender, sim, o ensino cristão, principalmente das línguas originais, hebraico e grego, como ferramenta hermenêutica, uma vez que o protestantismo é muito ligado ao texto bíblico – “não conseguiremos preservar o Evangelho corretamente sem as línguas. As línguas são a bainha da espada do Espírito. São o cofre no qual se guarda essa preciosidade. Elas são o vaso que contém essa bebida. São a despensa em que está guardado esse alimento” –, ele diz que a educação secular é importantíssima: “[...] sabemos, ou deveríamos saber, o quanto é necessário e útil, e o quanto agrada a Deus, quando um príncipe, senhor, conselheiro ou outra pessoa que deve governar, é instruída e apta para exercer essa função cristãmente. Mesmo que não existisse alma e não se precisasse das escolas e línguas por causa da Escritura e de Deus, somente isso já seria motivo suficiente para instituir as melhores escolas tanto para meninos como para meninas em toda parte […]”. Ele ainda defende o ofício de escritor, o ensino lúdico, o Trivium e o Quadrivium. Sua preocupação é bem fundamentada – e até comovente:

Ora, a juventude tem que dançar e pular e estar sempre à procura de algo que cause prazer. Nisso não se podia impedi-la nem seria bom proibir tudo. Por que então não criar escolas desse tipo e oferecer-lhes estas disciplinas? Visto que, pela graça de Deus, está tudo preparado para que as crianças possam estudar línguas, outras disciplinas e História com prazer e brincando. Pois as escolas de hoje já não são mais o inferno e purgatório de nossas escolas, nas quais éramos torturados com declinações e conjugações, e de tantos açoites, tremor, pavor e sofrimento não aprendemos simplesmente nada. [...] Falo por mim mesmo, se eu tivesse filhos e tivesse condições não deveriam aprender apenas as línguas e a História, mas também deveriam aprender a cantar e estudar música com matemática. Pois o que é tudo isso a não ser meras brincadeiras de crianças nas quais os gregos outrora educaram suas crianças e do que resultavam pessoas excelentes, preparadas para toda sorte de atividades. Como lamento que não li mais poetas e livros de História e que ninguém mos ensinou.

Mas o fato é que, pensando na negligência dos pais, que já se manifestava, bem como na incapacidade de muitos para ensinarem os filhos em casa, Lutero defende que “as autoridades têm o dever de obrigar os súditos a mandarem seus filhos à escola”. Mas não pelos motivos alegados por Rothbard.

Rui Barbosa, no mesmo parecer citado no artigo anterior, diz mais ou menos a mesma coisa:

Enquanto as condições sociais determinarem que o governo seja semi-temporal, semi-espiritual, o ensino oficial é inevitável, e impossível o ensino absolutamente livre. Quererá isto dizer que o ensino atual seja bom? De modo nenhum; nem eu quisera que se entendesse assim o meu pensamento […]. O que sustento é que o progresso e o melhoramento não se podem efetuar pela iniciativa da sociedade inteira; que hão de ser obra de alguns indivíduos assaz esclarecidos para avaliar a necessidade, assaz potentes para vencer a resistência passiva de uma imensa maioria que ignora ainda em que direção se há de encaminhar. Organizar-se por si mesmo um ensino liberal é impossível; cumpre, pois, organizá-lo.

Obviamente, as propostas de Rui Barbosa e Lutero são bastante válidas, uma vez que, partindo-se do princípio que é sumamente louvável que toda sociedade deve ser, pelo menos, alfabetizada, e que a educação, como afirma Dom Lourenço, é um direito natural, a escola e, mais especificamente, o professor, entram como coadjuvantes nesse processo, ajudando (essa é a palavra mais apropriada para o processo) a criança em seu desabrochar das capacidades intelectuais. Porém, arremata Dom Lourenço, “a educação não é, portanto, um direito outorgado pelo Estado ou pela sociedade, nem é um ornamento para aprimoramento acidental do homem, mas uma exigência essencial de sua natureza perfectível, condição necessária para ele mesmo. A educação é um direito natural da pessoa humana”. Fazer essa distinção paradoxal é dificílimo, mas é ela que trata de separar o direito individual do autoritarismo estatal. Nesse sentido, vale muito a pena ler as afirmações controversas de Rothbard, que, sem prescindir da necessidade da educação formal – pois “há uma área da educação onde espontaneidade direta e poucos preceitos não são suficientes” –, defende que:

Visto que cada pessoa é um indivíduo único, fica claro que o melhor tipo de instrução formal é aquele tipo que é adequado para sua própria individualidade. Cada criança possui inteligência, aptidões e interesses diferentes. Portanto, a melhor escolha do ritmo, calendário, variedade e forma dos cursos de instrução irá diferir de uma criança para outra. Uma criança pode se ajustar melhor, em interesses e habilidades, a um curso intensivo de aritmética, três vezes por semana, seguido por um curso similar de leitura pelos próximos seis meses; outra pode exigir um curto período para diversos cursos; uma terceira pode precisar de um longo período de instrução em leitura etc. Dados os cursos de instrução formais e sistemáticos, existe uma variedade infinita de ritmos e combinações que podem ser mais adequados para cada criança em particular. É óbvio, portanto, que o melhor tipo de instrução é a instrução individual.

As palavras de Rothbard vão ao encontro dos entusiastas do homeschooling (que é bastante restrito no Brasil); no entanto, é preciso encarar a realidade brasileira, na qual, na maioria dos casos, em famílias de média e baixa renda, os dois pais trabalham e isso dificulta muito – se não impossibilita – o processo de educação familiar. O crescimento de quase 300% no número de divórcios, em 30 anos, também não pode ser ignorado. Agora, Rothbard também expõe com precisão o paradoxo da educação estatal, de massa e obrigatória:

Que diremos, pois, de leis que instituem a escolaridade obrigatória para toda criança? Essas leis são endêmicas no mundo ocidental. Nos lugares onde escolas privadas são permitidas, todas elas devem cumprir as normas de instrução impostas pelo governo. Contudo, a injustiça da imposição de regras de instrução deve ser clara. Algumas crianças são lentas e precisam ser instruídas num ritmo menor; as crianças brilhantes exigem um ritmo rápido para desenvolver suas faculdades. Além disso, muitas crianças são muito aptas em determinado assunto e muito lentas em outro. Elas podem certamente ter a permissão de desenvolver a si mesmas em suas melhores disciplinas e renunciar as outras. Quaisquer que sejam as regras impostas pelo governo para a instrução, a injustiça é feita para todos – para os lentos que não absorvem qualquer instrução, para aqueles com diferente conjunto de aptidões em diferentes disciplinas, para as crianças brilhantes cujas mentes gostariam de estar lá fora e voar em cursos mais avançados, mas que devem esperar até que os lentos sejam caçados mais uma vez como cães. Da mesma forma, qualquer ritmo que o professor coloque na classe cria uma injustiça para quase todos; no lento que não consegue acompanhar, e no brilhante que perde interesse e preciosas chances de desenvolver seu grande potencial.

Sem contar os que, de fato, não gostam e não querem estudar. Mas, se forem crianças, evidentemente não têm autonomia para decidir. Se os pais não podem ensiná-las, que sejam encaminhadas à escola para, pelo menos, aprenderem os rudimentos da instrução formal a fim de usufruírem, com a ajuda dos adultos, do seu direito natural à educação.

No entanto, a discussão se torna mais problemática quando analisamos o ensino médio, pois já não estamos falando de alfabetização, ou mesmo de erradicação do analfabetismo como uma política – ainda que equivocada – de Estado. Estamos falando de adolescentes que já deveriam estar alfabetizados e cumprindo a função para qual esta etapa existe, conforme o art. 35 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB):

I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.

E ainda que essas finalidades sejam altamente questionáveis – e são, muito –, o fato é que muitos alunos estão chegando nessa etapa sem, ao menos, estarem devidamente alfabetizados; e mais: odiando o estudo – e, muitas vezes, a própria escola. Por isso, a decisão burocrática do Estado em determinar, por lei, o ensino obrigatório até os dezessete anos – podendo, inclusive, acionar judicialmente os pais por abandono intelectual –, deve, sim, ser questionada, uma vez que é uma iniciativa autoritária que, inclusive, fere a liberdade individual de indivíduos que legalmente já têm maturidade para votar e cumprir medidas socioeducativas por crimes.

O resultado é que, num contexto como esse, na impossibilidade de se produzir educação, tenta-se produzir uma espécie de nivelamento comportamental – a tal “socialização” – que transforma a escola numa espécie de depósito de crianças amputadas de sua formação básica, e jovens carentes de um mínimo de preparo intelectual que os capacitaria não a ter um pensamento crítico, mas um mero pensamento; quando não produz a famigerada doutrinação ideológica e/ou aquilo que Rothbard chama de “doutrina de obediência ao próprio Estado”. Mas disso falaremos no próximo artigo.

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