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Rui Barbosa em sua biblioteca.
Rui Barbosa em sua biblioteca.| Foto: Wikimedia Commons

A educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que introduzem a ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos […]. A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende. (Platão, A República)

Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. (Aristóteles, Metafísica)

Como o caríssimo leitor deve saber, sou professor do ensino básico numa escola pública. Há pouco mais de cinco anos assumi minha vocação – descoberta há mais de vinte – e hoje não me vejo em qualquer outra atividade, ainda que praticamente todas as circunstâncias deponham contra o sucesso de minha empreitada. Tudo parece correr, cada vez mais rápido, para um túnel escuro cuja saída não se vislumbra senão por uma intervenção divina: os índices educacionais são desanimadores; a prática pedagógica tem se tornado um desafio cada vez mais inglório; o compromisso mútuo tem se convertido em confronto; a burocracia do sistema de organização escolar é ineficaz e extenuante. E o resultado é uma quantidade cada vez maior de professores engrossando as fileiras dos tratamentos psicológicos e/ou psiquiátricos. O quadro parece dantesco? Pois, excetuadas as raras exceções, é mesmo.

Recentemente escrevi, aqui, nesta Gazeta do Povo, uma série de artigos sobre educação, sob o título "Uma luz para a educação", nos quais procuro oferecer algumas análises e propostas para a melhoria do ensino em nosso país. A abordagem, cujo caráter é mais filosófico – e, por isso, aos olhares desatentos pode parecer um tanto idealizada – está fundamentada nas análises do filósofo Eric Voegelin acerca da realidade contemporânea. Porém, neste artigo – e, provavelmente em mais alguns – pretendo abordar as dificuldades mais relacionadas à prática docente do dia a dia, das dificuldades que nós, professores e alunos enfrentamos em nosso ambiente de trabalho e estudo. Vale lembrar que minha perspectiva é absolutamente pessoal, fruto de minha percepção particular acerca da prática diária de meu ofício. Tal quadro pode diferir da percepção de colegas e, mais ainda, daqueles que atuam no ensino privado, cujos desafios se dão, em geral, em outras esferas.

Rui Barbosa denuncia os gastos supérfluos com grandes edifícios escolares, mas que não passavam de valorização das aparências

Para mim, um dos maiores problemas – senão o maior – de nossa educação pública está em nossa Constituição Federal de 1988, particularmente em seu artigo 205, que diz o seguinte:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (grifos meus)

Tal artigo impõe um verdadeiro – e provavelmente impossível – desafio à sociedade brasileira; mas, mais do que isso, delega tamanha responsabilidade àquele ente que tem se mostrado, ao longo de nossa história, absolutamente incapaz de cumprir com suas responsabilidades: o Estado. Pois diga-me, atento leitor, de que modo aquele que não consegue sequer fornecer saneamento básico para a população, poderá oferecer algo como “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (art. 206, inc. I)? Como um país cuja corrupção é sistêmica e endêmica, pode se responsabilizar por “garantia de padrão de qualidade” (art. 206, inc. VII)? Como, num país no qual imperam as culturas do patrimonialismo, da Lei de Gerson e do jeitinho brasileiro, poderá garantir “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um” (art. 208, inc. V)?

Que seja um direito de todos não se discute, pois a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, inc. II) é fruto da liberdade individual que nos garante o arquiconhecido Artigo 5.º. No entanto, como garantir o DEVER do Estado?

Essa reflexão não é nova, pois o ensino público sofre, no Brasil, desde a sua implantação oficial, na Constituição do Império de 1824, que garantia (ou, pelo menos, tentava) “A instrução primária é gratuita para todos os cidadãos” (art. 179, inc. XXXII). A Reforma Couto Ferraz, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia a obrigatoriedade do ensino primário, sob pena de multa. O decreto 7.247, de 19 de abril de 1879, de autoria do ministro Carlos Leôncio de Carvalho, reformou o ensino primário e secundário no município da Corte e o ensino superior em todo o Império, e convocou uma Comissão de Instrução Pública para analisar as reformas. Um dos convidados foi ninguém menos que o grande Rui Barbosa, um dos mais destacados políticos do Brasil e um dos maiores intelectuais de todos os tempos. Dessa análise, o nosso Águia de Haia produziu, em 1883, dois pareceres – Reforma do Ensino Secundário e Superior e Reforma do Ensino Primário e várias Instituições Complementares da Instrução Pública – que são verdadeiros monumentos não só da pedagogia nacional, mas também da língua portuguesa, pois Rui Barbosa manejava o idioma pátrio como poucos. Nos pareceres, Rui Barbosa faz uma análise da situação – que já se mostrava assaz calamitosa – e propõe mudanças. Ele inicia dizendo que:

O ensino público está à orla do limite possível a uma nação que se presume livre e civilizada; é que há decadência, em vez de progresso; é que somos um povo de analfabetos, e que a massa deles, se decresce, é numa proporção desesperadoramente lenta; é que a instrução acadêmica está infinitamente longe do nível científico desta idade; é que a instrução secundária oferece ao ensino superior uma mocidade cada vez menos preparada para o receber; é que a instrução popular, na Corte como nas províncias, não passa de um desideratum; é que há sobeja matéria para nos enchermos de vergonha, e empregarmos heróicos esforços por uma reabilitação, em bem da qual, se não quisermos deixar em dúvida a nossa capacidade mental ou os nossos brios, cumpre não recuar ante sacrifício nenhum; não só porque, de todos os sacrifícios possíveis, não haveria um que não significasse uma despesa proximamente reprodutiva, como porque trata-se aqui do nome nacional num sentido mais rigoroso, mais sério, mais absoluto do que o que se defende nas guerras à custa de dezenas de milhares de vidas humanas roubadas ao trabalho e centenas de milhões arrancados, sem compensação, aos mais esterilizadores de todos os impostos.

Qualquer semelhança com a situação atual não é mera coincidência, pois essa é a realidade da educação pública, na qual o Estado se responsabiliza por fornecer educação de qualidade para milhares/milhões de crianças e adolescentes. Rui Barbosa denuncia os gastos supérfluos com grandes edifícios escolares, mas que não passavam de valorização das aparências: “Fazemos praça do supérfluo, do inútil, das superficialidades ilusórias, das aparências dispendiosas e brilhantes, quando nos falece o necessário, o essencial, o rudimentar, os primeiros elementos da realidade modesta e eficaz”. Ou, ainda, reclamava como esse estetismo era, na verdade, um mascaramento da total falta de seriedade naquilo que era principal, o ensino:

Dos métodos, ou antes da ausência absoluta de método e racionalidade no ensino, diremos oportunamente. Mas desde já fique consignado que, salvas as diferenças pessoais de inteligência e instrução de alguns professores, em quem, seja como for, o talento e o estudo não podem suprir a míngua de preparação pedagógica, impossível nos estabelecimentos que entre nós assoalham o título de escolas normais, e que no geral não são senão normas pretensiosas da antiga rotina, – o que se asila sob o teto desses edifícios opulentos é, nem mais nem menos, a velha tradição dos obsoletos processos de cultura humana, cujos resultados em toda parte sempre foram a caquexia geral das inteligências e o entibiamento das qualidades morais entre as gerações nascentes.

E sobre os recursos, assevera:  “do material técnico de ensino existem apenas os elementos mais rudimentares e os tipos mais primitivos. Tudo está revelando o domínio absoluto da palavra autoritária do mestre, ou das fórmulas ferrenhas do compêndio, servidas pela memória passiva do aluno. Nada fala aos olhos da criança; nada lhe provoca os instintos de observação, nada lhe desperta a espontaneidade; nada a põe em contacto com o mundo e a natureza”.

Ou seja, tudo exatamente igual o que temos atualmente, após mais de 130 anos. Isso não coloca em xeque a capacidade do Estado nos fornecer educação de qualidade? Não seria preciso pensar em alternativas para essa triste constatação? Creio que sim.

Mas os erros continuam, pois governo brasileiro assumiu, em 2000, um tratado com a Unesco, visando a educação para todos, que tinha os seguintes desafios:

1 – Educação e cuidados na primeira infância:

Expandir e melhorar a educação e os cuidados na primeira infância, garantindo, além de condições de saúde, acesso à pré-escola.

2 – Universalização da educação primária:

Garantir que, até 2015, todas as crianças tenham acesso à educação primária completa, que no Brasil corresponde aos anos iniciais do ensino fundamental.

3 – Habilidades para jovens e adultos:

Garantir o acesso equitativo a uma aprendizagem adequada para habilidades laborais e técnicas.

4 – Alfabetização de adultos:

Alcançar, até 2015, aumento de 50% no nível de alfabetização de adultos.

5 – Igualdade de gênero:

Eliminar as disparidades de gênero na educação primária e secundária até 2015.

6 – Qualidade da educação:

Melhorar a qualidade para que resultados de aprendizagem mensuráveis e reconhecidos sejam alcançados por todos.

No entanto, dessas metas só cumprimos os itens 2 e 5. Mas, em 2009, outro tratado foi firmado com os mesmos objetivos, que até agora não foram cumpridos. Diante do exposto, há ainda outra pergunta a ser feita:

Como garantir educação para todos – e de qualidade – se nem todos querem estar na escola?

Essa resposta, atento leitor, deixarei para explorar no próximo artigo.

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