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Foto: David Paul Morris/Bloomberg
Foto: David Paul Morris/Bloomberg| Foto:

Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém
Todas as raças já foram escravas também
E deixa de ser rei só na folia
e faça da sua Maria uma rainha todos os dias
(Candeia, Dia de Graça)

Semana passada uma notícia no mínimo curiosa tomou conta dos jornais: o Google abriu 20 vagas para um programa de estágio visando – segundo o próprio site da empresa – “jovens minorizados”. Para isso, o Google diminuiu os critérios de seleção, retirando a exigência da fluência em língua inglesa como requisito básico. O programa, chamado Next Step – em inglês mesmo, para o candidato minorizado nem saber do que se trata –, terá a duração de dois anos, e oferecerá, além da oportunidade de efetivação, curso intensivo de inglês dentro do próprio escritório.

O Google só está esquecendo de dizer aos minorizados que no mercado extremamente competitivo das multinacionais, um intensivo de inglês, de dois aninhos, não lhes dará qualquer projeção; será preciso, infelizmente, muito – como é o nome daquela palavra que mete medo em ideólogo de esquerda? Ah, lembrei: mérito! Mas a justificativa do Google é curiosa: “Estima-se que menos de 5% da população brasileira fala um segundo idioma e que essa porcentagem é expressivamente menor entre jovens negros”. Vamos lá: num país onde menos de 5% da população fala um segundo idioma, o Google acha que o problema é a representatividade ou está apenas seguindo uma agenda ideológica cujo objetivo não é, verdadeiramente, resolver o problema, mas capitalizar politicamente?

Evidente que não nego os enormes problemas causados pelo golpe republicano de 1889, que marginalizou a população negra do país e cujas consequências se arrastam até hoje; mas tratar dessas mazelas após tanto tempo requer uma frieza de análise que os movimentos sociais não têm. Por exemplo, o quanto de nossa herança escravista é determinante para os problemas sociais que enfrentamos hoje? O quanto de nossa falta de capacitação profissional ou de estudo é fruto de discriminação “racial”?

Peço que acompanhes o meu raciocínio, prezado leitor, na rápida análise de um dos maiores problemas brasileiros da atualidade, a educação.

No último Pisa (Programme for International Student Assessment – Programa Internacional de Avaliação de Alunos), realizado em 2015, com 70 países, o Brasil ficou na posição 63 em Ciências, 59 em Leitura e 66 em Matemática. Temos 38 milhões de analfabetos funcionais (indivíduos que, embora saibam reconhecer letras e números, são incapazes de compreender textos simples, bem como realizar operações matemáticas mais elaboradas); e, entre os universitários, apenas 22% são proficientes em leitura. Diante disso, de acordo com pesquisa do instituto Pró-Livro, 44% da população brasileira não lê e 30% nunca sequer comprou um livro. Somando-se a esse quadro absolutamente aterrador, temos a informação da qual o Google se valeu para criar o seu maravilhoso programa: 5% dos brasileiros falam um segundo idioma – e, adendo, apenas 3% têm fluência no inglês.

É para rir, Google? Não, choremos.

E digo mais: a quase totalidade de meus alunos do ensino médio não tem a mínima ideia de quem foi Rui Barbosa, André Rebouças ou José Bonifácio. Nunca leram a carta de Pero Vaz de Caminha – a certidão de nascimento do Brasil, que, uma querida amiga, professora de História, me disse, desdenhosamente, tratar-se da visão do colonizador (?) – e não conseguem situar dom Pedro II na história brasileira. Nunca ouviram Carlos Gomes, nunca leram Machado de Assis, não sabem quem é Vitor Meirelles. Ignoram Cartola, Adélia Prado e Millôr Fernandes. Não compreendem uma página de um artigo jornalístico e poucos conseguem emitir um juízo minimamente coerente sobre algo.

Diante disso, o que fazem os ideólogos das ações afirmativas? Em vez de criarem estímulos que verdadeiramente tirem as próximas gerações dessa retaguarda histórica, cultural e educacional, preferem alimentar seu egoísmo olhando para resultados imediatos. Não têm consciência de que fazem parte de uma nação que existe antes deles e que deve permanecer em pé depois que eles não mais existirem com suas ideias de jerico. Aceitam, na corrida da vida, ver gerações largarem em desvantagem, crescerem na ignorância, para depois oferecerem uma pseudocompensação na chegada. Enquanto isso, matamos o futuro das próximas gerações em nome de um imediatismo egoísta. Os ideólogos das ações afirmativas, com sua alma adoecida de revolução, não sabem que mudanças perenes exigem tempo e maturidade. O problema da representatividade não é só um problema quantitativo, mas (muito mais) qualitativo. Não é propriamente de consciência social ou de classe, mas de consciência de seu papel no mundo. Coisa que os jovens negros e pobres de hoje têm cada vez menos.

Num país onde, atualmente, pouquíssimas crianças nascem em lares que dão a elas condições de criarem um campo de referências positivas a fim de construírem sua história e seu futuro, as referências externas se tornam fundamentais. Nossos jovens negros e pobres precisam saber que existiram pessoas como:

José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Negro, pobre, neto de escravos; a morte de seu pai, aos 6 anos, fez a mãe, ao perceber sua capacidade para os estudos, trabalhar incansavelmente como lavadeira, a fim de pagar-lhe os estudos e ajudá-lo a se transformar num exímio organista, considerado o maior compositor de música sacra das Américas de seu tempo, a ponto de chamar a atenção de dom João VI, que o fez Mestre de Capela da Catedral do Rio de Janeiro.

Ernesto Carneiro Ribeiro (1839-1920). Negro, pobre e neto de escravos, que, tendo nascido na Ilha de Itaparica (BA), aos 12 anos deixa a casa paterna e vai, sozinho, para Salvador estudar – dando aulas particulares, nessa idade, para pagar os estudos. Passa no vestibular para Medicina aos 18 e, ao mesmo tempo, assume como professor de Filosofia num prestigiado colégio da cidade. Forma-se médico, mas desiste de exercer, pois a paixão pelo ensino fala mais alto. Abre uma escola e torna-se um dos maiores educadores de todos os tempos, tendo como alunos Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua e Castro Alves, dentre outros ilustres.

Theodoro Sampaio (1865-1937). Negro, pobre e filho de uma escrava, que, tendo a oportunidade de estudar, forma-se engenheiro, junta dinheiro para comprar a alforria da mãe e dos irmãos, integra uma importante comissão de engenheiros americanos (ele, o único brasileiro, designado por dom Pedro II) que estudaram um plano de escoamento de águas e a tecnologia para a construção de sistemas pluviais no Rio. Teve importante participação no desenvolvimento urbano de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e muitas outras cidade do interior paulista, como Rio Claro, Itu e Santos. Tornou-se patrono do Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro (IGHB) e um dos fundadores da Escola Politécnica que hoje pertence à USP.

Há muitos outros, prezado leitor. Inclusive, trato disso com detalhes em meu curso O Brasil é um país racista? (mais informações aqui). Mas ficarei só nesses; sabe por quê? Porque os ideólogos do movimento negro, que trocaram sua independência e liberdade pela escravidão ideológica – a submissão servil a projetos políticos e a teorias identitárias europeias –, não amam de verdade a história do Brasil e seus heróis negros; pelo menos não como deveriam. Trocaram todas essas referências positivas (que hoje chamam, maliciosamente, de exceções), tão importantes no processo de identificação e superação das dificuldades, por Zumbi dos Palmares, uma figura lendária cujo caráter revolucionário serve mais a interesses marxistas do que à verdadeira identidade negra brasileira.

A tara desses ideólogos pela questão econômica, achando que o problema da discriminação racial se revolve com mobilidade social, faz com que ignorem o fato inescusável de que todos os nossos grandes heróis foram financeiramente pobres e cresceram em ambientes de extrema adversidade, mas construíram um legado riquíssimo para nossa história, que, se for devidamente lembrado e ensinado – não só como adereços comemorativos ou temas de teses acadêmicas, mas como referência real para nossa juventude –, teremos, dentro de poucas gerações, uma verdadeira transformação da condição não só dos negros, mas de todo o país.

O buraco é mais embaixo, seu Google!

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