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Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil| Foto:

“Os brasileiros querem ter liberdade; mas liberdade individual, e não as que tinhas as repúblicas antigas, que era só a pública ou política. Não estão em estado de fazer sacrifícios contínuos pessoais, para figurarem nas assembleias e na administração; assim temo muito que nosso edifício social não acabe em pouco tempo, logo que afrouxe o entusiasmo momentâneo que o gerou”. (José Bonifácio de Andrada e Silva)

 

Apagadas as luzes do processo eleitoral, a pergunta que se faz é uma só: o que se espera dos milhões de brasileiros que serão governados por Jair Bolsonaro, o presidente eleito com 55,1% (57.797.847) dos votos válidos? Pois é, inverti a pergunta. Se você acompanha meus artigos aqui, nesta Gazeta do Povo, estimado leitor, sabe que considero nosso papel, como nação, como indivíduos, muito mais importante que o papel dos políticos. Já disse e repito: a política é o resultado do que somos como nação, e não o contrário.

Thomas Mann, o grande escritor alemão, refletindo sobre a noção de liberdade que o povo alemão tinha quando da ascensão de Hitler ao poder, disse:

“Como foi possível o nacional-socialismo se qualificar como ‘movimento de liberdade alemão’ quando é impensável, para o bom senso, que semelhante horror tenha algo que ver com liberdade? Isso foi possível através de uma inversão da noção de liberdade, inversão a que o pensamento alemão sempre se inclinou, e que, como tudo que é falso e funesto nesse pensamento, foi levado ao extremo pelos nazistas”. (Ouvintes alemães!, Zahar, p. 207)

Ou seja, foi o próprio povo alemão e sua cultura, à época inclinados a uma deturpação da noção de liberdade, que permitiram a chegada de Hitler ao poder. O maníaco encontrou um caminho propício para propagar seus crimes. Ele não surgiu do nada, não foi alguém fabricado; ele se aproveitou dessa noção errônea de liberdade, que Thomas Mann chama de exterior, política – que menosprezava a liberdade interior, que colocava a noção de “ser alemão, apenas alemão e nada mais, nada além disso”, numa espécie de “egoísmo popular”, num “individualismo obstinado” que estava acima de tudo – para dominar, pois “um povo que não é livre internamente e responsável por si mesmo, não merece a liberdade externa; não pode falar de liberdade. E quando precisa dessa sonora palavra, então a emprega erroneamente”. (p. 207)

Essa noção de liberdade de que fala Thomas Mann vai ao encontro de tudo o que venho defendendo desde o início desta coluna, cujo lema é “a liberdade é um direito radical”. Radical no sentido de inerente, inseparável do indivíduo, que pertence à sua essência, à parte mais elevada de seu ser.

O movimento ascensional do indivíduo (da alma), na Caverna de Platão (Livro VII da República), rumo ao Belo, ao Bem e ao Verdadeiro, é um movimento de libertação, de rompimento de cadeias interiores que prendem o ser humano àquilo que é falso, ilusório. É um movimento, segundo Platão, de recuperação da razão, de sensatez, que influencia diretamente nossa moralidade:

“[…] no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública”. (A República, 517c).

A democracia, segundo Platão, é um governo de “pessoas livres”, no qual “a cidade […] estará cheia da liberdade e do direito de falar”. No entanto, em tal sistema, “nunca uma pessoa poderia tornar-se um homem de bem, se logo, desde a infância, não brincasse no meio de coisas belas e não se dedicasse a todas as atividades dessa qualidade” (558b). É necessário que cada um de nós invista tempo nas melhores atividades, na cultura superior, na melhor educação de nossos filhos, na melhor condução de nossa vida pessoal. Caso contrário, falharemos sempre e sempre, seremos como aqueles que “sem querer saber para nada da preparação com que se vai para a carreira política, mas só presta honras a quem proclamar simplesmente que é amigo do povo” (558c).

Está tudo lá, caríssimo leitor, escrito há quase 2500 anos! São os princípios que, juntamente com o Cristianismo, formaram o Ocidente, que consolidaram a nossa civilização e que criaram as maiores potências mundiais. Como diz Olavo de Carvalho, num de seus artigos mais brilhantes, a política e a economia não são capazes de criar e consolidar uma civilização; são os valores imateriais – língua, religião e alta cultura –, cultivados por todos, que podem fazê-lo. As causas de nosso fracasso são conhecidas:

“O pragmatismo grosso, a superficialidade da experiência religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das atividades do espírito ao mínimo necessário para a conquista do emprego (inclusive universitário), a subordinação da inteligência aos interesses partidários, tais são as causas estruturais e constantes do fracasso desse povo”.

Os cinco pontos levantados por Olavo podem ser encontrados em cada iniciativa messiânica que surge em nossa experiência pessoal e pública – bem como em nossa política. Somos sempre empurrados para uma noção errônea de que o progresso ou o conserto de determinada situação desfavorável cabe num slogan cuja aplicação levará, invariavelmente, à resolução de nossos problemas mais profundos. Nossa religião, há muito, tornou-se uma tentativa vã de manipular o sagrado em nosso favor – quando não, de mantê-lo longe de nossas decisões claramente reprováveis. O conhecimento, quando esse afã pragmático rasteiro e apressado toma o lugar da reflexão, é demonizado, tido como algo elitista. E, por fim, todo o brilhantismo de muitos decai e se submete à mera busca por um lugar ao sol –  ao centro de poder e influência.

Ou seja, como diz Platão, “os princípios e doutrinas mentirosos e presunçosos correm para a vez dos outros e apoderam-se do lugar que lhes pertencia” (560c), empurrando a todos – principalmente a elite intelectual – para a ilha dos lotófagos – terra mítica dos comedores de flor de lótus, alimento narcótico que fez os companheiros de Ulisses, na Odisseia (Livro IX 82-104), perderem a vontade de retornar à pátria –, uma clara alusão de Platão ao desejo da alma que, uma vez satisfeita  com o estado letárgico provocado pelo prazer das coisas terrenas, se esquece de sua origem espiritual, de que a razão é divina.

O trabalho de refundação de uma civilização em frangalhos – como a nossa –, a reconquista de nossa liberdade interior, é longo, exige prudência, perseverança e, sobretudo, inteligência; não pode ser conseguido em quatro ou mesmo oito anos. Não é o resultado de uma eleição, ainda que favorável, que nos dará um país melhor, mas o esforço incansável de cada um de nós, a responsabilidade de cada indivíduo por dar o melhor de si para a reconstrução de nosso país, assolado por um populismo rasteiro e corrupto há décadas.

Neutralizar o avanço do projeto de poder petista e eleger um candidato que, de certo modo, representa tudo aquilo que a esquerda mais abomina – o que nos alimenta de um certo sadismo –, é prazeroso, mas sequer arranha nossa tão arraigada cultura da vantagem e do privilégio – nossa Lei de Gerson. É necessária uma mudança profunda em nossa moralidade pública e privada, que passa pela total reformação de nossa imaginação moral – “a capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento”, de acordo com Russel Kirk em A era de T. S. Eliot (É Realizações).

Cumpre ao presidente criar condições para que isso se efetive e que saibamos aproveitar a oportunidade que se nos apresenta.

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