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Cena da minissérie Roots, do History Channel (2016)
Cena da minissérie Roots, do History Channel (2016)| Foto:

“Se um quadro tão doloroso aperta com frieza mortífera o coração sensível de todos os brasileiros – porque, ainda, depois de recuperada a liberdade, abusar tanto de seus benignos frutos e até querer-lhe decepar o tronco da existência?” (Antônio Pereira Rebouças)

 

Estive, na última terça-feira, 13 de novembro de 2018, em Manaus, na Escola Superior da Magistratura do Amazonas (Esmam), instituição de ensino ligada ao Tribunal de Justiça do AM, que “tem como missão promover a capacitação continuada de magistrados do Poder Judiciário estadual”, participando do evento Diálogos Institucionais, cujo tema foi o racismo. O convite me foi feito em nome de seu atual diretor, o desembargador Flávio Humberto Pascarelli Lopesque, e a mesa de debatedores (melhor seria palestrantes, pois não se tratou propriamente de um debate) foi composta por – além de mim, evidentemente : Maurílio Casas, defensor público e professor universitário; Juarez Clementino da Silva Jr., servidor do Tribunal de Justiça do AM e ativista social; Michelle Andrews, ativista de movimentos feministas e de negritude; e do promotor de justiça Vítor Fonseca.

O evento foi muito bem organizado – agradeço imensamente ao amigo Harlem Ferreira e toda a equipe do TJAM/Esmam, pela especial acolhida –, contou com um público considerável para uma tarde de terça-feira e o saldo foi bastante positivo e surpreendente, sobretudo para mim, que fui o único a falar de uma perspectiva, digamos, pouco usual nesse debate. Além de ter sido a primeira vez que falei diretamente para um público que não é, usualmente, o meu. Foi muito bom, mesmo. Ambiente acolhedor e ponderado, sem animosidades, e todos absolutamente à vontade para falarem de acordo com suas perspectivas.

Como eu era o palestrante “de fora”, fui convidado a falar primeiro – o que me causou um misto de preocupação e alívio, pois não poderia prever o impacto que isso causaria no auditório e nos outros debatedores; mas também, pensei eu, provavelmente reorganizaria as palestras seguintes no sentido de tentarem responder (ou refutar) o que eu dissesse – o que, de fato, ocorreu.

Quem me conhece sabe que minha perspectiva em relação a esse tema é a da liberdade individual radical.  E vale a pena reproduzir aqui algumas definições que fiz em minha palestra, para fins didáticos.

Comecei definindo o conceito de raça, uma vez que o racismo só pode existir como fruto da racialização do ser humano; se raças não existem, racismo não deveria existir. Portanto, o racista é todo aquele que, partindo da crença na existência de raças – seja de caráter biológico ou cultural –, atribui a uma pessoa ou grupo características intrínsecas, positivas ou negativas, que a diferenciem de qualquer outro ser humano ou grupo. É isso, e não pode, pela lógica do conceito, ser outra coisa. Uma vez que raças biológicas não existem, e que o conceito de raça como cultura é extremamente equívoco e controverso, raça e racismo se tornaram ideologias. E aqui vale, mais uma vez, definir ideologia, pois a confusão é imensa e o marxismo se apropriou de tal modo do conceito, que é quase impossível falar sobre ideologia de uma perspectiva, digamos, conservadora e ser compreendido.

De acordo com Andrei Pleșu, em seu estupendo Da alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental (É Realizações): “As ideologias são construções rápidas de ideias, surgidas de um interesse privado ou de grupo e tendo como escopo a modificação da mentalidade pública, das instituições da vida social […] As ideologias não se preocupam com elaborações amplas, não se detêm em detalhes e não têm tempo de análise bem fundada. Não querem produzir sistemas explicativos, mas esquemas incisivos, mobilizadores. O ponto de partida delas não é a realidade propriamente dita, mas um interesse de classe ou de categoria social”. Ou seja, as ideologias não têm nenhuma preocupação com a realidade concreta e nem com os desdobramentos de suas ações mobilizadoras a fim de “melhorar o mundo”; antes, querem, mediante utopias inconsequentes, atingir o seu objetivo, não importando a quantidade de estrago que provoquem no processo – e nem mesmo se o objetivo será, de fato, atingido.

No entanto, o fato de raça ser uma ideologia não faz com que o racismo desapareça da face da terra; ele existe e deve ser encarado como tal. O problema é que, no Brasil, a ideia do Racismo Cordial – de que o racismo por aqui é exercido de modo furtivo, mas eficiente e estruturante – qualifica e/ou estigmatiza toda a população não negra como racistas potenciais, e impede qualquer perspectiva diferente dessa, hegemônica e inquestionável em todo ambiente em que o racismo é discutido.

Em minha maneira de ver, o que ocorre é o seguinte: o longo período escravista criou uma mentalidade que associa o negro, quase sempre e automaticamente, à subalternidade. E esse pensamento hierárquico e discriminatório se perpetua até hoje, mesmo inconscientemente, 130 anos após a abolição. Mas não tenho certeza se isso pode, categoricamente, ser chamado de racismo. Confundir a dona da casa com a empregada – evento corriqueiro nos lares brasileiros – é um ato falho, uma estupidez, a reprodução de uma mentalidade engessada no passado. Mas racismo? O que temos, antes de tudo, é um problema de imaginação moral. A criança cresce (ou crescia, pois creio que isso já mudou muito nos últimos anos) com essa visão, não só reproduzida pelos pais, mas pela mídia, pelas novelas, filmes, pelo material didático – ou seja, todo o seu imaginário era preenchido por negros em posições subalternas. Mas isso passou. Quem, ainda hoje, cresce com essa mentalidade, mesmo com a inequívoca profusão de negros proeminentes no Brasil e no mundo, é um idiota antes de ser um racista.

Como disse Joaquim Nabuco em seu célebre O abolicionismo“Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime só daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos”.

Nesse ponto, o trabalho da militância negra brasileira por espaço na mídia e nos livros didáticos – não só como os “condenados da Terra” – foi importante. Mas é preciso paciência e prudência para que essa chaga cicatrize. Não será possível “adaptar à liberdade cada um dos aparelhos” sociais afetados pela escravidão, mediante processos revolucionários; não será com militância separatista e estridente, mas com educação formal e informal, e com uma cultura que contribua com a verdadeira reformação da imaginação moral do brasileiro.

O problema é que a militância negra atual, ao submeter sua luta à causas político-partidárias, entregou-se à escravidão ideológica. Explico:

Escravidão ideológica, termo cunhado por mim e que já se espalha como pólen ao vento, é a submissão intelectual e moral a pseudoconceitos e ativismos políticos considerados apodíticos e inquestionáveis – sobretudo em relação a problemas sociais complexos (como o racismo) –, mas explorados de forma que o problema em si mesmo nunca seja efetivamente contemplado, mas promova o benefício daqueles que dele se apropriam. Essa submissão ideológica, sobretudo às teorias marxistas (por exemplo, conceitos como “opressor” e “oprimido”), gerou um processo de vitimização do negro, de supressão de sua liberdade de consciência, de alijamento de suas referências e, sobretudo, na criação de uma tensão social insolúvel, pois, uma vez que as categorias de raça e classe tornaram-se indissociáveis, cumprem seu papel dialético numa luta política que só interessa à esquerda – que usa os movimentos sociais como hospedeiros de suas ideologias –, mas não visam à resolução do problema.

Um exemplo é a acusação de o oprimido tornar-se opressor quando não abraça a ideologia da luta de classes.

Esse é o verdadeiro problema. A submissão servil dos movimentos negros à esquerda e à antropofagia ideológica de suas causas está criando, a passos largos, o ambiente social caótico do qual ela se alimenta ao preço de implodir iniciativas genuínas. Somos obrigados a ver, inclusive, as espantosas acusações de racismo mediadas ideologicamente: se você está conosco, seu racismo é aceito; se não está e é negro, é capitão do mato (vejam o caso Ciro Gomes vs. Fernando Holiday).

Não existe fim do racismo; sempre haverá estúpidos que não gostam de negros. Paciência. O que, de fato, precisamos, é de uma verdadeira liberdade. Liberdade da escravidão ideológica, das senzalas ideológicas que se tornaram os chamados coletivos e as universidades, liberdade das amarras político-partidárias e liberdade econômica para podermos empreender e botar em prática nossos ideais e ideias, diminuindo a desigualdade pelo trabalho. O racismo se tornará um problema menor, insignificante até, a medida que as liberdades individual e econômica forem um verdadeiro norte da vida brasileira. Lutar por um país mais justo é lutar por um país mais livre, cuja liberdade radical seja um meio de todos – negros e brancos, pobres e ricos – alcançarem sua autonomia em relação às características paternalistas do Estado brasileiro e às ideologias políticas.

Essa foi, em tese, a minha palestra.

Os demais debatedores – sobretudo os ativistas Juarez e Michelle – procuraram refutar o que eu disse, trazendo as famigeradas estatísticas que já tratei em outros artigos aqui, nesta Gazeta do Povo, e, de certo modo, confirmaram minha tese quando fizeram associações viciadas entre raça e classe e disseram, dentre outras coisas, que racismo só pode ser praticado por quem exerce poder – uma clara visão marxista.

O saldo, como eu disse, foi bastante positivo.

Mas o mais curioso, mesmo, veio no final, nas perguntas – que foram realizadas on-line. Um anônimo (covarde seria o termo mais adequado) perguntou: “Quando começou a sua Síndrome de Estocolmo, quando tomou uma pancada na cabeça, de um policial, na juventude?”

Ou seja, a senzala ideológica surta quando um negro se liberta.

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