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"A redenção de Cam", de Modesto Brocos. Wikimedia Commons
"A redenção de Cam", de Modesto Brocos. Wikimedia Commons| Foto:

“[…] muitos senhores, não querendo reconhecer que, sob o invólucro grosseiro do preto bate muita vez um coração nobre, generoso e capaz das maiores virtudes que honram a humanidade, crêem comprar no homem ou na mulher sujeitos ao tirânico jugo da escravidão um animal de carga, ou um necessário autômato, cujas molas devem mover-se a gosto ou a capricho de seu dono […] Mães brasileiras, afastai dos olhos de vossos filhos o espetáculo de uma opressão cruel que lhes enerva a compaixão e agrava mais a triste sorte desses míseros a quem deveis, como cristãs, caridosamente dirigir. Ensinai-lhes cedo a olhá-los como nossos semelhantes e, por conseguinte, dignos de nossa comiseração no estado a que os reduziram nossos maiores”. (Nísia Floresta, Opúsculo Humanitário, 1853)

Os militantes antiracismo que já me acharam por aí costumam dizer, manifestando toda aquela má vontade para compreender quem pensa diferente, que nego o racismo no Brasil. Apesar de eu nunca ter dito isso, de reafirmar constantemente que há, sim, racismo em nosso país, e que, inclusive, já passei por muitas situações que confirmam que há por aqui, misturado à discriminação pela cor, uma espécie de cultura que tende a tratar o negro como alguém subalterno e menos capaz. Mas é preciso distinguir as coisas, a fim de – como diz o ditado – não jogarmos, junto com a água da bacia, a criança na privada.

O fato é que o racismo pressupõe a crença consciente na existência de raças e que há diferenças substanciais entre elas. E para provar o meu ponto, eis que me deparo, na semana passada, com as declarações de Adilson Durante Filho, ex-secretário-adjunto de Turismo da prefeitura de Santos, no litoral de SP, e ex-conselheiro do Santos Futebol Clube – cargos dos quais ele foi desligado –, num áudio vazado e divulgado, no último dia 17, no programa Sucupira Connection, da Rádio da Vila, nos quais destila o mais puro e inequívoco racismo. Durante Filho, neste áudio de WhatsApp, declara, com todas as letras, que existem raças e que, inclusive, há diferenças de caráter entre elas. Tome um antiemético antes de ler, estimado leitor:

Sempre que tiver um pardo, o pardo o quê que é? Não é aquele negão, né?, mas também não é o branquinho. É o moreninho da cor dele. Esses caras – você tem que desconfiar de todos, de todos que tu conhecer. Essa cor é uma mistura, é duma raça que não tem caráter. É verdade, isso é estudo. Todo pardo, mulato, ‘cê tem que tomar cuidado. Não mulato tipo o [nome], o [nome] é tipo pra índio, tipo chileno, essas porr*. Tô dizendo o mulato brasileiro, entendeu? Os pardos brasileiros. São todos mau-caráter. Não tem um que não seja.

Mas de onde vem essa ideia estapafúrdia de Adilson Durante Filho? Não é possível rastrear, com precisão, o conceito de raça, mas sabe-se que, no mundo antigo, era usado para diferenciar etnias ou povos – ou seja, num mesmo continente poderiam existir muitas “raças”. Mesmo porque era ponto pacífico entre os povos a ideia de que o ser humano não era um ente meramente corpóreo e que, portanto, sua moralidade, inteligência ou comportamento não poderiam ser medidos tão somente por suas características físicas. Os mitos e a filosofia falam do ser humano como um ser composto. Os gregos – sobretudo Platão e Aristóteles – na divisão entre corpo (soma) e alma (psiqué), e o Cristianismo tratou de dar forma acabada ao conceito – afirmando sermos compostos de corpo, alma e espírito. Como diz Eric Voegelin, em The history of race idea:

A imagem cristã eleva o homem da natureza; embora o apresente como uma criatura entre outras, como um ser finito entre outros, o justapõe ao resto da natureza; ele fica entre Deus e o mundo subumano. Tal status intermediário não é determinado por uma lei formativa única, que constituiria o homem como uma existência auto-contida, mas por sua participação no mundo superior e inferior. Em virtude de sua alma, o homem está unido ao pneuma divino; em virtude de seu corpo, sua sarx [carne], ele participa da transitoriedade; sua existência é ‘inautêntica’.

Ainda de acordo com Voegelin, foi somente no final do século 17, através de John Ray, naturalista considerado o pai da botânica moderna, que a classificação de “sistemas naturais” e espécies começa a ser explorado. A partir desse momento, “a ideia de uma ordem natural do mundo vivo veio a prevalecer sobre a ordem artificial baseada em características externas, de acordo com o genus proximum differentia specifica”. Continua Voegelin:

O novo conhecimento factual e as questões levantadas gradualmente levaram a uma prontidão para ver o mundo vivo e o homem de uma nova maneira. Podemos distinguir duas fases neste processo de maturação: uma primeira fase, na qual a vida aparece como um fenômeno primário, e uma segunda, na qual se desenvolve uma imagem do homem como uma figura unificada, terrestre e autônoma. Na primeira fase, a imagem cristã da natureza foi dissolvida. Plantas e animais foram vistos como criaturas de Deus, como seres materiais moldados e animados pela mão de um mestre artesão. A substância viva apresentou-se como o meio em que um plano foi realizado; A matéria organizada era entendida como um constructo, uma máquina, um instrumento que incorpora a engenhosa ideia de seu construtor e se move de acordo com essa ideia […] A segunda fase é a que chamamos de internalização da pessoa. Quando a imagem da vida como internalizada emergiu, a imagem cristã do homem como um ser imortal acorrentado ao reino sensorial transformou-se na imagem de uma figura unificada que vive seu significado nesta existência terrena.

Tais concepções desembocaram no materialismo absoluto, e o homem foi considerado um mero animal entre outros, contudo, mais evoluído; e suas características físicas foram consideradas determinantes para seu comportamento.

Aqui no Brasil, tais ideias chegaram somente no final do século 19, através de três principais propagadores: os médicos João Batista de Lacerda e Raimundo Nina Rodrigues, e o diplomata francês Arthur de Gobineau. Ao verem o continente africano, à época, tecnologicamente muito atrasado em relação à Europa, e também para justificarem a escravidão, homens cultos como Nina Rodrigues foram levados a dizer, por exemplo, numa obra que liga a criminalidade à raça – As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil – coisas como:

Os negros africanos são o que são: nem melhores nem piores que os brancos: simplesmente eles pertencem a uma outra fase do desenvolvimento intelectual e moral. Essas populações infantis não puderam chegar a uma mentalidade muito adiantada e para esta lentidão de evolução tem havido causas complexas.

Por conta da autoridade dos pensadores europeus e da subserviência intelectual acrítica de pensadores brasileiros – que, diga-se de passagem, dura até hoje –, tais ideias tiveram ampla aceitação entre a intelligentsia brasileira. A miscigenação foi vista, por muitos, como algo prejudicial ao Brasil, algo que levaria o país a uma condição de subdesenvolvimento. Gobineau afirmou isso em sua obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. D. Pedro II, que era seu amigo pessoal, o considerava pessimista em relação ao desenvolvimento das sociedades, e, influenciado pelo darwinismo recém-surgido, disse, numa carta de 24 de abril de 1880: “É preciso que se ocupem mais seriamente com a educação do povo e não mais em explorá-lo por interesses mais ou menos admissíveis. Entretanto, não sou inimigo do meu século como vós o sois, e a doutrina da evolução é exata em seu fundamento”. Alexis de Tocqueville, de quem Gobineau foi secretário, condenou com veemência suas ideias, dizendo, numa carta:

[…] Claramente o Cristianismo procura tornar todos os homens irmãos e iguais. Tua doutrina os torna, na melhor das hipóteses, primos cujo pai comum está nos céus: aqui só há vencedores e vencidos, mestres e escravos desde o nascimento. E isso é tão verdadeiro que tuas doutrinas são aprovadas, citadas e comentadas por quem? Por proprietários de escravos e por aqueles que favorecem a perpetuação da escravidão fundada sobre a diferença fundamental da raça. Sei que, neste exato momento, há no sul dos Estados Unidos sacerdotes cristãos, e, talvez, bons sacerdotes (embora sejam donos de escravos), que pregam sem dúvida doutrinas análogas às tuas. Mas […] tenhas certeza, digo, que, neste mundo, a maioria dos cristãos não pode ter a menor simpatia por tuas doutrinas.

Atualmente, apesar da total falta de acordo, entre os cientistas, em relação à existência de raças humanas biológicas, e também do assunto ter se tornado um tabu incômodo, é ponto pacífico, como diz o filósofo Kwame Anthony Appiah, em sua obra Na casa de meu pai, que “qualquer biólogo bem conceituado há de concordar que a variabilidade genética humana que diferencia as populações da África, da Europa ou da Ásia não é muito maior que a existente dentro dessas mesmas populações, ainda que o ‘muito maior’ dependa, em parte, da medida de variabilidade genética que o biólogo escolher”.

Porém, isso pouco importa, pois, como ele diz anteriormente, “aquilo que a maioria das pessoas da maioria das culturas comumente acredita, no tocante à significação da diferença ‘racial’, é muito distante daquilo em que os biólogos de fato concordam”. Mas conclui dizendo que o conceito de raça é uma ideologia – ideia com a qual concordo absolutamente, pois reduz o homem, que é um ser composto (como diz Voegelin, ecoando toda a tradição filosófica e teológica que formou o Ocidente), à mera corporeidade. Mesmo quando transformado em cultura, como fizeram os sociólogos contemporâneos, a fim de legitimar o pseudo-conceito e criar essas divisões e ressentimentos todos – e capitalizar em cima disso –, é absurdo tentar determinar raças por ligações meramente culturais. Quantas culturas há no continente africano, por exemplo, para que brasileiros negros da atualidade, nascidos aqui, se arroguem herdeiros de uma suposta cultura afro?

Mas, voltando a Adilson Durante, percebemos que a ciência na qual ele crê piamente está superada há mais de um século. Quando diz “isso é estudo”, não faz a mais parca ideia do que afirma; ignora nossa história e as grandes personalidades e exemplos morais que tivemos e temos. Nega a existência de Machado de Assis, de José Maurício Nunes Garcia, de Chiquinha Gonzaga, de Castro Alves, de Maria Amália Cavalcante de Albuquerque, de Carlos Gomes, de André Rebouças e de tantos outros, do passado e do presente, conhecidos ou não, cujo caráter ultrapassa – em muito! – o seu. O racismo entranhado em sua consciência, muito provavelmente pela educação que recebeu (ou pela falta dela), o faz ter certeza do que assevera, e dar ares de autoridade à sua estupidez. Não o faz como quem titubeia, sabendo que está “pisando em ovos”; não, ele está absolutamente certo do caráter científico de suas sandices. É um exemplo irrefutável do que eu chamo de racista. E apesar de ter vindo a público dizer que o áudio era antigo – cerca de 3 anos atrás – e que “em um momento de infelicidade e levado pela emoção, em decorrência de um fato que muito me abalou, acabei me expressando de forma absolutamente diversa das minhas crenças e modo de agir”, duvido, pela própria maneira incisiva com a qual se manifesta, que ele não pense realmente assim.

Mas, diga-me, sinceramente, atento leitor, quantos Adilsons conheces? Pois é. E viste a reação da opinião pública? Pois é. Graças a Deus eles são minoria.

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