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Richard Wagner além de Hitler
| Foto: Reprodução

(A Filipe Torquato, saudoso amigo wagneriano)

Desse momento em diante, as gravações wagnerianas (principalmente do Anel, mas também de Lohengrin e Parsifal) tornaram-se o principal investimento da minha mesada e os presentes que, invariavelmente, eu pedia. A apreciação que eu tinha da música em geral não se alterou muito, de início. ‘Música’ era uma coisa; ‘música wagneriana’ era outra bem diferente, e não havia meio de comparação entre as duas. (C. S. Lewis, em Surpreendido pela Alegria)

Meu primeiro contato com o nome de Richard Wagner foi, muito provavelmente, com a leitura, já há quase duas décadas, de C.S. Lewis – que era absolutamente fascinado pela música wagneriana (e a citação da epígrafe é um exemplo) – e de Nietzsche, especialmente em O nascimento da tragédia. Até então, Wagner era apenas um nome sugestivo, posto ligado a dois autores que eu lia e admirava. Um pouco mais tarde, num impulso de descobrir o que era música clássica – que eu ignorava –, os dois primeiros CDs que adquiri foram um de Johann Sebastian Bach (de quem já tratei em artigo nesta Gazeta do Povo) e um de prelúdios, coros e temas orquestrais das óperas de Wagner. Ao ouvir o Coro dos Peregrinos, da ópera Tannhäuser, dei-me conta de que o arrebatamento que sentiram Lewis e Nietzsche não era puro exagero fantasioso. As incontáveis vezes que, à primeira audição, repeti essa música, no último volume em meus fones de ouvido, fizeram dessa experiência algo inesquecível.

Dali em diante mergulhei fundo no universo wagneriano. Comprei CDs, DVDs, livros, filmes, e realizei o sonho – um tanto frustrado, como descrevi num artigo de 2012 – de ver ao menos uma das óperas do ciclo do Anel dos Nibelungos ao vivo. Durante um bom tempo não ouvi outra coisa, e até que me apropriasse completamente de tudo que estava ao meu alcance e se relacionava à obra desse grande mestre, eu não desisti. Passava horas absorvendo a carga de mitologia nórdica e de exaltação romântica dos prelúdios, árias e coros de Tristão e Isolda, Parsifal e Lohengrin. Wagner é um mundo onde a arte atingiu patamares insuperáveis; sua filosofia de reformação do imaginário alemão, apesar de todas as contradições, tem muito a nos ensinar para além de seu nacionalismo doentio e da apropriação nazista posterior. Por isso gostaria de, ao menos, introduzi-lo (ou estimulá-lo, caso já conheça), meu caríssimo leitor, brevemente, na vida e na obra desse que foi e continua sendo um dos maiores gênios artísticos de todos os tempos.

Richard Wagner nasceu em Leipzig, na Saxônia, em 22 de maio de 1813. Filho de Carl Friedrich Wagner, um escrivão de polícia, e de Johanna Rosine. Especula-se, até hoje, se Wagner não teria sido, na verdade, filho do pintor Ludwig Geyer, pois este, como afirma Barry Millington – um dos maiores estudiosos de Wagner – em Wagner: um compêndio, “era amigo íntimo da família e, após a morte de Friedrich, em 23 de novembro de 1813 (apenas seis meses após o bebê Richard haver nascido), atendeu às necessidades financeiras da viúva e da família. Johanna visitou Geyer em Dresden, em fevereiro de 1814, e ficaram noivos; casaram-se em 28 de agosto de 1814 e tiveram uma filha, Cäcilie, seis meses depois”. Geyer, que morreu em 1821, estimulou Wagner desde cedo nos estudos e nas artes, mas foi com seu tio Gottlob Henrich Adolf, irmão de Friedrich e um intelectual que fora amigo de Schiller e Fichte, que Wagner adquiriu o amor por Shakespeare e pelos gregos, que influenciaram de forma indelével sua própria arte.

É possível intuir que Wagner jamais concordaria com a submissão da arte aos interesses de Estado; para ele, a cultura pertence ao Völk – ao povo

Beethoven também foi uma influência marcante na obra de Wagner, pois, ao ter inaugurado a sinfonia coral, subverteu o gênero consagrado e iniciou a quebra de paradigma levada a cabo por compositores como Sergei Rachmaninoff e Gustav Mahler (sobre quem também já falei). No entanto, tais influências foram por ele maximizadas, em sua autobiografia Mein Leben, e levadas a um caráter, digamos, folclórico. Afirma Thomas S. Grey: “A conjunção de Beethoven e Shakespeare está claramente imbuída de implicações simbólicas e proféticas, mesmo considerando ser inteiramente plausível que o jovem músico e teatrômano ardoroso estivesse autenticamente fascinado por essas figuras”.

Em 1820 estuda piano com o pastor Christian Wetzel, seu professor de latim; em 1826, com apenas 13 anos, demonstra seu fascínio pelos gregos traduzindo 12 livros da Odisseia, de Homero, e inicia a escrita de uma tragédia chamada Leubald und Adelaide, concluída em 1828. Nessa época também estuda harmonia com Christian Gottlieb Müller. Suas primeiras composições – duas sonatas para piano e um quarteto de cordas – surgem em 1829. Em 1831 entra para a Universidade de Leipzig, e, em 1833, já músico de certa experiência, assume o cargo de maestro de coro num teatro local. No mesmo ano inicia o texto de sua primeira ópera, Die Feen (As Fadas), concluída em 1834, quando torna-se diretor musical de uma companhia itinerante de teatro. Também no mesmo ano, com Don Giovanni, de Mozart, inicia sua carreira de regente operístico. Em 1840 escapa por pouco de ser preso por causa de dívidas, mas conclui sua primeira grande ópera: Rienzi.

O casamento com Minna Planer, em 1834, inicia a série de desventuras amorosas de Wagner, que lhe impuseram a exagerada fama de Don Juan. No entanto, pondera Barry Millington, “é evidente que essa ideia exige alguma reavaliação. Para começar, seus casos sérios e eventuais, reunidos, mal excedem uma dúzia, o que fica um tanto longe dos supostos 1.003 de Don Juan, somente na Espanha. Não obstante, é significativo que essa dúzia inclua uma elevada proporção de mulheres ‘comprometidas’”. Os casos mais notórios são com Mathilde Wesendonck, esposa de um de seus mecenas, Otto Wesendonck, e cuja consumação nunca foi comprovada – a não ser pelas especulações em torno das canções que compôs para alguns poemas escritos por ela, que culminaram nas belíssimas Wesendonck Lieder e em sua obra-prima Tristão e Isolda. Outro caso ocorreu com sua derradeira esposa, Cosima, filha do grande compositor Franz Liszt, seu amigo, e que, à época, era casada com Hans von Büllow, pianista, maestro e também grande amigo de Wagner – que tinha, inclusive, regido várias de suas óperas. O relacionamento com Cosima, que Wagner conhecia desde criança, se iniciou quando o casal Büllow, em 1864, passou uma temporada em companhia do compositor em sua residência. À época, Büllow estava doente e mal percebeu o que estava acontecendo. Cosima teve três filhos de Wagner antes de se separar de Büllow e se casar com ele, em 1870. Tanto Otto Wesendonck quanto Hans Büllow, curiosamente, mantiveram amizade com Wagner mesmo sabendo de sua conduta condenável.

Há ainda o envolvimento de Wagner com as revoluções republicanas (e anarquistas e socialistas) inspiradas nos ideais da Revolução Francesa. Em 1848, conheceu o anarquista russo Mikhail Bakunin, a quem se uniu na exaltação revolucionária antiburguesa. Wagner, que era um crítico mordaz dos costumes de sua época, editou jornais revolucionários e publicou artigos e poemas ao melhor estilo maiakovskiano. Com a revolução esmagada pelas tropas prussianas, em 1849 Wagner foge com Minna para a Suíça e só em 1860 obterá uma anistia parcial para voltar à Alemanha. É também entre 1860 e 61 que Wagner vai a Paris, atendendo a um convite de Napoleão III, para apresentar sua ópera Tannhäuser. Mas a incompreensão do público parisiense à ousadia musical wagneriana lhe rendeu vaias e cancelamento das apresentações. O poeta Charles Baudelaire, admirador de Wagner – “ao senhor devo o maior prazer musical de que já experimentei”, disse-lhe o poeta em carta –, ficou tão indignado com o que ocorreu que escreveu um ensaio a respeito (Richard Wagner e Tannhäuser em Paris, publicado em português).

Em 1864 conhece aquele que se tornaria o seu grande patrono: Ludwig II, da Baviera, que subira ao trono aos 18 anos e era um completo apaixonado pelas óperas de Wagner. Concede ao compositor anistia total e o faz instalar-se na Villa Pellet, perto do castelo de Schlossberg, pagando todas as suas dívidas e lhe oferecendo uma renda anual de 8 mil florins, o que causou furor nos políticos da corte, que empreenderam uma campanha ferrenha contra Wagner, convencendo o rei a despachá-lo de sua tutela – pelo menos aparentemente – no ano seguinte. Mas Ludwig manteria suas constantes ajudas a ele, inclusive contribuindo de maneira decisiva na construção do teatro de Bayreuth, a menina dos olhos de Wagner. Em junho de 1886 Ludwig foi declarado incapaz de governar e deposto por uma comissão do governo; dias depois foi encontrado morto, afogado. Sua história é retratada no belíssimo filme Ludwig, de Luchino Visconti.

Em 1868 Wagner conhece o filósofo Friedrich Nietzsche, que considera a obra do compositor o correspondente perfeito de suas ideias divulgadas em O nascimento da tragédia. A amizade entre os dois durará até 1880, quando Nietzsche se decepciona com Wagner no Festival de Bayreuth, considerado por ele uma reprodução da diversão burguesa que, juntos, tanto criticaram. A pá de cal na amizade veio com Parsifal, sobre o qual Nietzsche, em seu ateísmo ressentido, diz, em Ecce Homo: “Incrível! Wagner tornara-se beato”.

A pedra angular das ideias de Wagner sobre uma ópera reformada era a regeneração social

Mas o que importa mesmo na obra de Wagner são suas óperas finais, a tetralogia O Anel dos Nibelungos e o drama místico Parsifal. A tetralogia é composta por O ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O crepúsculo dos deuses, e traduzem perfeitamente as aspirações de Wagner na recuperação do que acreditava ser uma superioridade cultural baseada na reformação do imaginário alemão. Como ele disse: “Meu próprio ideal artístico depende da salvação da Alemanha: sem a grandeza da Alemanha minha arte seria apenas um sonho”. E é nisso que está pautado todo o seu nacionalismo – e também o seu antissemitismo. “O nacionalismo de Wagner”, diz William Weber, “enquadra-se no padrão encontrado entre compositores russos e tchecos, pelo qual a ideia servia como um meio de ajudar uma cultura musical nacional a competir em melhores termos com os poderosos idiomas cosmopolitas”; nesse caso, a França era o grande idioma artístico da época. E mais: seu antissemitismo “estava estritamente ligado ao seu nacionalismo e à reforma da ópera”. Ele considerava a influência dos judeus na cultura uma espécie de mercantilização e banalização da arte.

É evidente que isso, posteriormente (influenciado, inclusive, pelo escabroso darwinismo social de ideólogos como Arthur de Gobineau), descambaria naquele antissemitismo doentio que alimentou o nazismo no século 20. Mas a percepção de Wagner, para além de sua tentativa de encontrar culpados para a degeneração cultural alemã e, com isso, uma consequente degeneração social da nação, não estava de todo errada. Como diz William Weber, “a pedra angular de suas ideias sobre uma ópera reformada era a regeneração social. Nos termos mais básicos, isso significava o retorno da sociedade ao seu espírito puro e original, por meio do ritual do drama em música; ao expurgar a ópera de sua tradição corrupta, a sociedade se regeneraria”. E Wagner escolhe o mito para tal regeneração, uma vez que, para ele, “o mito é o poema primitivo e anônimo do povo, e nós o reencontramos em todas as épocas reutilizado, remanejado incessantemente pelos grandes poetas dos períodos cultos”. Por isso ele mesmo, Wagner, diz ter abandonado “de uma vez por todas o terreno da história e me estabeleci no da lenda”.

Roger Scruton, em Coração devotado à morte – seu livro dedicado à ópera Tristão e Isolda –, compreende isso perfeitamente, e diz:

Seu objetivo não era identificar pessoas e acontecimentos históricos exemplares, mas familiarizar-se com uma cultura em que o real tinha sido vastamente penetrado pelo ideal: uma cultura em que as pessoas não apenas faziam coisas, mas viviam em nome de coisas. Assim ele descobriu o mito – não como uma reunião de fábulas e crenças, nem como religião primitiva, mas como categoria distinta do pensamento humano, tão aberta para nós, Wagner pensava, nesse mundo de ceticismo científico, quanto para os habitantes da Grécia ou da Islândia antigas. O mito surgiu para Wagner como uma forma de esperança social […] Para Wagner, o mito não é uma fábula, nem uma doutrina religiosa, mas um veículo do conhecimento humano. O mito nos faz conhecer a nós mesmos e nossa condição, usando símbolos e personagens que dão forma objetiva a nossas compulsões interiores […] Os mitos não falam daquilo que foi, as daquilo que é eternamente.

Por isso a importância das lendas escandinavas para Wagner, porque ele via nelas os modelos exemplares (para usar um termo de Mircea Eliade) para a regeneração cultural de seu povo, para a reforma da imaginação moral da sociedade. Se para as classes abastadas europeias a ópera era apenas um meio de divertimento – e também um local para fazer negócios –, para Wagner era um dos principais, senão o principal, veículo de educação e cultura. Por isso o seu envolvimento com todos os aspectos da ópera, desde a música e os libretos, até os cenários, figurinos e a construção de um teatro especialmente para a montagem de suas óperas, o Bayreuth Festpielhaus. Na obra de arte total wagneriana, cada aspecto é importante para garantir o efeito catártico semelhante ao produzido pela tragédia grega, cuja função era, como diz Aristóteles, de “purificação das paixões”.

Desse modo é que Wagner se aproxima das religiões – sobretudo do cristianismo e do budismo. Não como um crente – ele nunca viria, apesar de ter sido criado num lar protestante, a confessar a fé em nenhuma religião –, mas, como diz Scruton, por acreditar que “um mito não era um conto de fadas decorativo, mas a elaboração de um segredo, um modo de, simultaneamente, revelar e ocultar o que só pode ser compreendido em termos religiosos, pelas ideias de santidade, de sacralidade e de redenção”; e que “todos nós precisamos dessas ideias e que, ainda que as pessoas comuns através do véu da doutrina religiosa, elas adquirem vida nos grandes exemplos de amor e de renúncia, encontrando na arte uma forma articulada”. Suas óperas, sobretudo as finais, como a Tetralogia do Anel e Parsifal, exaltam o valor do heroísmo humanista, do amor e da renúncia redentores. “O ciclo do Anel”, diz Scruton, “nos mostra pessoas que vivem num mundo encantado – um mundo pelo qual os deuses vagueiam, cheios de interesse pela humanidade, em que as forças que nos prejudicam ou que nos assistem são personalizadas e recebem preces. Mas esse encantamento, que coloca os deuses no Valhalla e as leis no mundo humano, também é uma usurpação. Os deuses nascem de nossas necessidades e esforços inconscientes – eles são lançados por aquela explosão de energia moral por meio da qual a comunidade humana emerge da ordem natural e se idealiza”.

Wagner pretendia resgatar a sua querida Alemanha dos descaminhos modernos – através de um método que considero absolutamente apropriado: a reformação da imaginação moral pela arte. No entanto, incorreu, influenciado pelas ideias controversas de filósofos como Ludwig Feuerbach e Arthur Schopenhauer, bem como pelos ideais revolucionários de Bakunin e Proudhon (Marx nunca foi citado por Wagner), em erros grosseiros de interpretação da própria realidade, e caiu em delírio ideológico. Mas é importante frisar que a confusão que maculou a sua mente não comprometeu, de modo algum, a sua obra absolutamente genial. Por sua postura anticlerical e antiestado, também é possível intuir que ele jamais concordaria com a submissão da arte aos interesses de Estado; para Wagner, a cultura pertence ao Völk – ao povo. E nunca saberemos se o uso que, posteriormente, Hitler fez dos ideais nacionalistas e antissemitas wagnerianos – um combustível para a ideologia nazista e seus massacres genocidas – seria compactuado pelo compositor. Resta-me, como um grande admirador da obra de Richard Wagner, crer que não.

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