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Rodrigo Bocardi e o famigerado racismo estrutural
| Foto: Bob Smith/Free Images

Intelecto não se confunde com sabedoria […] Puro poder mental, o intelecto é a capacidade de apreensão e manipulação de conceitos e ideias complexas, e pode estar a serviço de conceitos e ideias que desembocam, por sua vez, tanto em conclusões equivocadas quanto em ações insensatas, tendo-se em vista todos os fatores envolvidos, incluindo aqueles que são deixados de lado durante as engenhosas construções do intelecto imaturo. (Thomas Sowell, Os intelectuais e a sociedade)

Na última sexta-feira, como todos já devem saber, Rodrigo Bocardi, apresentador do Bom Dia SP, da Rede Globo, se meteu numa confusão que deve ter lhe comprometido o sono no fim de semana. Ao ver um rapaz negro, que estava sendo entrevistado por Tiago Scheuer, com uma camisa de um clube tradicional de SP, e perguntar se ele era catador de bolinhas – funcionário que fica recolhendo as bolas de tênis enquanto as pessoas jogam –, ouviu a resposta que o desgraçou: o rapaz é atleta de pólo aquático no clube. Mas a situação constrangedora não ocorreu porque o rapaz se sentiu ofendido – ele até riu –, mas porque as pessoas, nas redes sociais (perpetradoras contumazes de crises miméticas) se manifestaram prontamente, acusando o âncora de racismo. Por ter sido uma afirmação incontinente e, ao que tudo indica, inconsciente, a acusação não recaiu no racismo puro e simples, inequívoco, mas na concepção de racismo estrutural – da qual discordo e, inclusive, já expus em artigo nesta Gazeta do Povo, mas gostaria de dizer mais algumas coisas.

A mim parece muito estranha uma acusação de racismo, assim, abstrata. Primeiro porque, se existe racismo estrutural, todos – negros e brancos – são racistas até que se prove o contrário, uma vez que uma estrutura é uma forma ou sistema que atinge a todos . Mas a coisa é ainda pior, pois provar o contrário não parte de uma simples afirmação de um indivíduo ao dizer “não sou racista”, mas de sua afirmação ser aprovada por aqueles que lhe acusam. Segundo porque fizeram do racismo crime inafiançável no Brasil; portanto, acusar alguém de racismo sem ter condições de provar objetivamente – e a Lei 7.716/89 é clara em relação aos casos em que o racismo se configura – pode levar quem acusa a cometer crime de calúnia, de acordo com o Código Penal, que diz:

Art. 138: Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
§ 1.º – Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.

Se existe racismo estrutural, todos – negros e brancos – são racistas até que se prove o contrário

Ou seja, é muito complicado acusar alguém de racismo de forma indiscriminada, sabendo se tratar de um crime – e creio que os acusados só não tomam as devidas providências por se sentirem acuados diante do volume assombroso de manifestações reproduzidas nas redes sociais. E a licença para acusar se dá pelo fato de que esse assunto há muito deixou de ser discutido de acordo com critérios racionais e conceituais; o politicamente correto blinda os acusadores do ônus da prova, e o acusado passa a ter de se desdobrar para provar que não é racista – em todos os casos recentes, sem sucesso, e muitas vezes, mesmo sem um processo legal, o acusado acaba sendo prejudicado moral e materialmente – o recente caso ocorrido com o jornalista William Waack é exemplar.

É evidente que há, no Brasil, uma reprodução inconsciente de estereótipos arraigados na sociedade há séculos, e uma cultura de subalternização do negro foi sendo criada e alimentada pelo processo de marginalização ocorrido após a abolição e, sobretudo, o golpe republicano. Os negros ocupam, desde então, em sua maioria, posições de menor prestígio socioeconômico. As estatísticas que apontam a presença maciça de negros nas periferias não mentem, mas as conclusões de que a causa disso é o racismo não são sustentáveis sem certo esforço retórico – trato disso num capítulo para o livro da coleção Breves Lições sobre Thomas Sowell, lançado pela LVM: “O ponto central do livro de Sowell é o capítulo sobre as estatísticas propriamente ditas. Os números de pesquisas estatísticas são bastante úteis para medir disparidades, no entanto (...) todo cuidado é pouco. Sowell aponta que, apesar de serem úteis, ‘os números também podem ser enganosos não por causa de quaisquer defeitos intrínsecos neles mesmos ou nas palavras que os descrevem, mas por causa de suposições implícitas sobre os padrões com os quais estão sendo comparados’”. O Brasil atual, como tenho dito, ainda é um país economicamente oligárquico, que tende a privilegiar quem já tem recursos e prejudicar aqueles que estão em desvantagem. Em outras palavras: é muito bom para quem é rico e muito ruim para quem é pobre; e, como os negros são os mais pobres, sofrem todo tipo de dificuldades para uma mobilidade social ascendente. Isso é estrutural, isso é sistêmico. Mas essa dificuldade atinge a todos os pobres, sem exceção.

O preconceito de cor pode ser uma agravante da discriminação social? É evidente que sim; mas essa conclusão é genérica e praticamente impossível de provar, pois é subjetiva. Numa entrevista de emprego, não ser contratado por ser negro é, antes de tudo, uma suposição do candidato; se é uma atitude real do contratante, nunca saberemos a não ser que ele se arrisque a dizer a alguém e isso se torne público – como no caso relatado pelo presidente da Bayer do Brasil, em 2017. No entanto, tal situação só me faria crer na existência de um racismo estrutural se, de fato, negros – e somente negros – não conseguissem ascender socialmente no Brasil. Dizer que é mais difícil e que menos negros ocupam posições de poder é uma constatação que não admite conclusões raciais pelo fato de haver muitos brancos, a depender da região do país, em situação de pobreza. No RS e em SC, por exemplo, os brancos são maioria entre a população carcerária e entre população em geral. Já em SP, mesmo os brancos sendo a maioria da população, os negros são maioria dentro das prisões. A ideia de exceção deve ser contemporizada – ser exceção hoje não significa que será sempre ou que não tenha melhorado muito nas últimas décadas

Alberto Guerreiro Ramos, um gênio do pensamento brasileiro, era um contumaz realista. Mesmo sendo um militante bastante aguerrido na denúncia contra o racismo e um marxista profundamente preparado para defender suas posições, não se furtava de analisar a realidade. Na metade da década de 1950, ele diz, em seu excepcional ensaio O problema do negro na sociologia brasileira:

A maior frequência de indivíduos pigmentados na estatística de certos crimes decorre necessariamente de sua predominância em determinadas camadas sociais. Assinala um fenômeno quantitativo e não qualitativo. Por outro lado, careceria de base objetiva a afirmação de que o negro no Brasil manifestasse tendências específicas essenciais na vida associativa, na vida conjugal, na vida profissional, na vida moral, na utilização de processos de competição econômica e política. O fato é que o negro se comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e estrato social.

Mas é igualmente categórico em dizer:

Observe-se que, em nossos dias, graças ao desenvolvimento econômico e social do país, elementos de cor se encontram, de alto a baixo, em todas as camadas sociais, e só em algumas instituições nacionais vigoram ainda fortes restrições para o seu acesso a determinadas esferas. Nestas condições, o que parece justificar a insistência com que se considera como problemática a situação do negro no Brasil é o fato de que ele é portador de uma pele escura. A cor da pele do negro parece constituir o obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a norma, o valor, por excelência.

O Brasil sofre, sim, com um tipo de cultura que ainda considera o negro como subalterno, mas porque o “normal” era isso até não muito tempo atrás – e ainda é, de certo modo

Esse ideal de brancura na cultura brasileira é fruto da colonização e ainda se faz sentir; mas não é exclusividade dos brancos que vieram para o Brasil. Como diz Guerreiro Ramos:

No século 14, o geógrafo Ibn Batouta deplorava o desprezo pelos brancos que demonstravam os negros sudaneses. A mesma aversão se registra entre os índios pele-vermelha. Os Bantus “não civilizados”, informa S. W. Molema, têm profunda aversão a toda pele diferente da sua. Os nativos da Melanésia, segundo Malinowski, acham os europeus horríveis. Certos canibais teriam repugnância pela carne do homem branco, que eles acham não “amadurecida” ou “salgada” e, conforme relatos de mais de um etnólogo, alguns povos africanos associam à pele branca a ideia “de descoloração de um corpo que permaneceu muito tempo dentro da água”. O pastor Agbebi refere que, para muitos africanos, o homem branco exala um odor fétido, desagradável ao olfato. E Darwin, que viajou muito e visitou diversas partes do guindo, escreveu: “a ideia do que é belo não é nem inata nem inalterável. Constata-se isso no fato de que homens de diferentes raças admiram entre suas respectivas mulheres tipos de beleza absolutamente diferentes”.

Vencer esse tipo de cultura exige tempo e um esforço de definir precisamente o problema, a fim de evitar que caiamos em generalizações e ideologias. O Brasil sofre, sim, com um tipo de cultura que ainda considera o negro como subalterno, mas porque o “normal” era isso até não muito tempo atrás – e ainda é, de certo modo. É um problema de imaginação moral, de formação de nosso imaginário; assim como, durante muito tempo, a imagem do baiano foi associada à preguiça e do português à parvoíce. Os casos de racismo explicito, como o de Adilson Durante Filho, devem ser combatidos, pois são fruto de um preconceito consciente, eugênico e perigoso. Já o comportamento de pessoas como Rodrigo Bocardi deve ser admitido como uma mera reprodução inconsciente de um triste padrão, associado aos estereótipos tão arraigados. Bocardi saiu postando foto de quando morou em Angola e compartilhando vídeo com os verdadeiros “catadores de bola”, se esforçando para provar que tudo não passou de um mal entendido – e tentando, obviamente, desfazer o processo mimético de destruição de sua reputação. Ou seja, pode ter sido preconceituoso, no sentido de se valer de “ideias preconcebidas” para emitir um julgamento – tema explorado por Theodore Dalrymple em Em defesa do preconceito. Mas, se ele diz que não é racista, não temos o direito de acusá-lo de um crime que ele diz não ter cometido, a não ser que possamos provar. Racismo estrutural é um rótulo, um pseudoconceito que associa, automaticamente, cor e condição social e provoca a tensão pretendida por seus propugnadores com a finalidade evidente de propor a única maneira de resolver o problema de uma estrutura: substituí-la por outra. É aí que mora o perigo.

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