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Sensação não é conhecimento
| Foto: Wikimedia Commons

“Nossa humanidade comum pede algo diferente: se a verdade parece múltipla, devemos tentar esclarecê-la. Isso requer energia intelectual e disciplina. Em vez de nos obstinarmos a afirmar nossa opinião, buscamos razões. Em vez de afirmar ʻAssim que eu souʼ, reconhecemos ignorar o que, no fundo, somos e reconhecemo-nos suscetíveis de mudar”. (Karl Jaspers)

O debate público enlouqueceu. A democratização do acesso à internet, que lançou uma enormidade de pessoas no mundo digital e, sobretudo, nas redes sociais, deveria ser um motivo de comemoração – e, vá lá, é. No entanto, os espaços que antes serviam para puro entretenimento, se transformaram em arenas de discussões acaloradas, quando não, violentas. A alteridade, a solidariedade e o bom senso foram substituídos pela necessidade de se provar, a todo instante, que se está certo, absolutamente certo, by any means necessary.

Não que uma boa discussão, um bom debate não seja motivo de diversão. Provar um ponto e vencer com argumentos são coisas prazerosas e eu mesmo amo debater, julgo uma atividade muito estimulante, na qual deposito, com satisfação, um esforço considerável – um esforço de me fazer entender. No entanto, os ânimos estão exaltados a ponto de as pessoas não conseguirem mais ponderar as limitações do meio – não estamos fisicamente diante de nosso “oponente” e isso muda quase tudo –; todos são, agora, especialistas nos mais diversos assuntos e agem como se estivessem, sempre, diante de um inimigo a ser não vencido, mas destruído. E isso está acontecendo não só entre desconhecidos, mas entre aqueles que se conhecem e até entre familiares. As pessoas estão confundindo a vitrine (onde expomos somente o que queremos) que é a internet, com a vida real.

Isso ocorre, como já afirmei anteriormente, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, porque o rigor argumentativo, “para a mente moderna, é considerado bobagem, uma vez que o próprio conceito de verdade desapareceu em meio a todo o relativismo que a filosofia assumiu e que contagiou o senso comum nos últimos séculos”. Cada pessoa é dona de sua própria verdade particular e absoluta, e não aceita ser confrontada nem com fatos nem pela realidade. A privatização das opiniões como se fossem verdades é um problema grave num mundo globalizado, pois impossibilita os acordos necessários à nossa sobrevivência. Se todos estão certos, não há o que negociar, o que ceder, e seguimos a passos muito largos para um nível tão profundo de isolamento que nem mesmo uma pandemia foi capaz de nos unir.

Mas tal problema não é novo. No século 04 a.C., Platão já se deparava com o problema da legitimidade do conhecimento e da verdade, e tentava demonstrar os perigos da relativização exacerbada. Em vários de seus diálogos o tema é abordado e tratado, como sempre, de maneira magistral. Platão, que era um idealista – no sentido de crer que tudo que existe é dotado de uma essência que pertence a um mundo Ideal, perfeito, espiritual por assim dizer –, não acredita ser possível dizer que, como afirma o sofista Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”, e nem, como Heráclito, que a verdade está exatamente na variação, no movimento, na sensação.

No diálogo Teeteto, Sócrates conversa com um amigo, Teodoro, que lhe apresenta o jovem Teeteto. Deste diz Teodoro: “A facilidade de aprender como apenas se encontraria em mais alguém, uma docilidade única, associada a singular valentia são qualidades que nunca imaginei pudessem existir ou que ainda venhamos a encontrar. […] Avança com naturalidade e segurança na senda do saber e da pesquisa, com doçura igual ao do óleo que escorre sem bulha, que admira com tão poucos anos já tenha feito o que fez”. Ou seja, é um jovem promissor. Sócrates, que ama instruir e debater, fica empolgado e pede para que Teodoro lhe apresente o jovem.

A alteridade, a solidariedade e o bom senso foram substituídos pela necessidade de se provar, a todo instante, que se está certo, absolutamente certo, by any means necessary

No entanto, logo no início do diálogo entre Sócrates e Teeteto, surge a questão sobre o conceito de conhecimento, com o mestre perguntando a seu interlocutor, se “aprender não significa tornar-se sábio a respeito do que se aprende”. Ao receber uma resposta afirmativa, decide questionar sobre o conhecimento em sentido estrito. A resposta de Teeteto não é satisfatória, o que leva Sócrates a uma profunda digressão sobre o modo utilizado por ele para extrair o conhecimento de seus interlocutores: a maiêutica – o parto das ideias. Ele diz:

Sócrates: E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete?

Teeteto:  Sim, já ouvi .

Sócrates: Então, já te contaram também que eu exerço essa mesma arte?

Teeteto:  Isso, nunca .

Sócrates: Pois fica sabendo que é verdade.

O diálogo é longo e soberbo, mas, para nosso brevíssimo propósito, cumpre apontar alguns questionamentos que Sócrates faz sobre os problemas relacionados ao subjetivismo e ao empirismo radical de Protágoras, que Teeteto e Teodoro admiram. Ao ouvir Teeteto dizer que “conhecimento não é mais que sensação”, ou seja, que o conhecimento é fruto única e exclusivamente do que sente o indivíduo, o sujeito, Sócrates diz: “É a definição de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem”. E emenda: “Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para mim conforme me aparecem, como serão para ti segundo te aparecerem? Pois eu e tu somos homens”. À resposta afirmativa de Teeteto, o mestre toma seu interlocutor pela mão e o faz caminhar até o seu erro:

Sócrates: Minha sensação, portanto, é verdadeira para mim, pois sempre faz parte do meu ser, sendo eu, por isso mesmo, o único juiz, de acordo com o dito de Protágoras, em condições de dizer que as coisas que são para mim existem mesmo, e também que as que não são para mim não existem.

Teeteto:  Parece.

Sócrates:  Então, se eu nunca erro, e se meu pensamento não tropeça no ajuizar o que é ou devém, como se explica que eu não tenha o conhecimento daquilo de que tenho a sensação?

Teeteto:  E o que não se pode admitir .

Sócrates:  Por isso mesmo, tinhas carradas de razão, quando disseste que o conhecimento não passa de sensação, o que vem a dar, precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de toda a tribo de seus acompanhantes: Tudo se movimenta como um rio; ou, segundo a fórmula do sapientíssimo Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas, e que é também a de Teeteto, o qual concluiu disso que há perfeita identidade entre conhecimento e sensação. Não é assim mesmo, Teeteto? Não estamos autorizados a dizer que nisso tudo temos um feto dado por ti à luz agora mesmo, com a ajuda dos meus conhecimentos de parteiro? Ou como te parece?

Teeteto: Necessariamente, Sócrates, terá de ser como disseste.

Uma vez admitida essa conclusão, o mestre arremata:

“Se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação; se as impressões de alguém não encontram melhor juiz senão ele mesmo, e se ninguém tem autoridade para dizer se as opiniões de outra pessoa são verdadeiras ou falsas, formando, ao revés disso, cada um de nós, sozinho, suas opiniões, que em todos os casos serão justas e verdadeiras: de que jeito, amigo, Protágoras terá sido sábio, a ponto de passar por digno de ensinar os outros e de receber salários e astronômicos, e por que razão teremos nós de ser ignorantes e de frequentar suas aulas, se cada um for a medida de sua própria sabedoria? Não nos assiste o direito de afirmar que tudo isso na boca de Protágoras não passava de frase para armar o efeito? No que me diz respeito e à minha arte de parteiro, nem me refiro ao ridículo que provocamos, o que, aliás, se poderia tornar extensivo a toda a arte da conversação. Pois analisar e procurar refutar as fantasias e opiniões de outras pessoas, dado a que todas sejam certas para cada um de nós, não será o cúmulo da sensaboria e da tolice, se a Verdade de Protágoras for realmente verdadeira e se ele não estava pilheriando, quando doutrinava dos penetrais sagrados do seu livro?”

Ou seja, o relativismo é uma armadilha, e Sócrates vai argumentando e corrigindo a concepção errônea de que as sensações, aquilo que sentimos, é conhecimento. Não é. Quando alguém – que, quero crer, não és tu, caríssimo leitor – em reação a qualquer evento que lhe fira os brios, se arvora no direito de discutir e impor suas certezas em redes sociais sobre todo e qualquer assunto; quando o que as pessoas sentem passa a ser, para elas, a certeza de que estão certas; quando o arrepio na espinha confunde-se com a centelha da inteligência, significa que as coisas vão mal. Quando pessoas, com um smartphone, nos rincões mais longínquos desse país, que antes se informavam por um ou dois meios, estão como se tivessem descoberto a Pedra Filosofal, as coisas vão muito mal.  Devemos aprender dos antigos. E, nesse sentido, Platão é fundamental:

“[…] Não possível eliminar os males – forçoso é haver sempre o que se oponha ao bem – nem mudarem-se eles para o meio dos deuses. É inevitável circularem [os homens] nesta região, pelo meio da natureza perecível . Daqui nasce para nós o dever de procurar fugir quanto antes daqui para o alto. Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus; e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria. Mas a verdade, meu excelente amigo, que não é fácil convencer ninguém de que as razões consideradas válidas pela maioria para fugir do vício e procurar a virtude não são as que levam um a cultivar esta e evitar aquela, a fim de não parecer ruim, senão virtuoso. A meu ver, tudo isso não passa de história de velhas, como se diz. Mas a verdade, vou declarar-te qual seja: de modo nenhum Deus é injusto, senão justo em grau máximo, não podendo ninguém ficar semelhante a ele se não for, tornando-se o mais justo possível. É assim que se avalia com acerto a superioridade de uma pessoa, ou sua covardia e falta de virilidade. O conhecimento de semelhante fato configura a sabedoria e a verdadeira virtude, e sua ignorância, maldade e tolice manifestas”.

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