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Cena da série “Them”, da Amazon Prime Video.
Cena da série “Them”, da Amazon Prime Video.| Foto: Divulgação/Amazon Prime Video

“Na ilha de Patmos não havia mais ninguém além desses demônios louros, de pele clara, olhos azuis frios, selvagens, nus e desavergonhados. Cabeludos como animais, eles andavam de quatro e viviam nas árvores.” (Malcolm X, em sua Autobiografia)

A citação em epígrafe, retirada da célebre (e esgotadíssima no Brasil) autobiografia de um dos maiores líderes pelos direitos civis dos negros americanos, Malcolm X, é parte de sua narração a respeito de uma das mais controversas doutrinas da Nação do Islã – seita muçulmana e racista de que fez parte desde sua conversão, na prisão, em 1948, até seu rompimento, em 1964: a criação do Homem Branco. Ele narra a seu coautor, Alex Haley, que, enquanto ainda estava na prisão, sua irmã Hilda lhe contou a “História de Yacub”, uma teoria que mistura semelhanças com os mais notórios mitos da Queda reproduzidos ao longo dos milênios com cientificismo contemporâneo, adicionando um elemento peculiar, o racialismo – pois, na teologia da Nação do Islã, a “raça branca” é uma criação demoníaca.

Isso mesmo, caro leitor. De acordo com o relato de Malcolm X, “os primeiros humanos, o Homem Original, eram homens pretos. Tinham fundado a Cidade Santa de Meca. Entre essa raça preta, havia 24 sábios cientistas. Um dos cientistas, em disputa com os outros, criou a tribo preta especialmente forte de Shabbazz, da qual descendiam os chamados negros da América”. E ele continua:

“Há 6,6 mil anos, quando 70% das pessoas estavam satisfeitas e 30% insatisfeitas, entre as insatisfeitas nasceu um certo ‘Sr. Yacub’. Ele nasceu para criar problemas, para acabar com a paz, para matar. Sua cabeça era enormemente grande. Entrou para a escola quando tinha 4 anos de idade. Aos 18 anos, Yacub já tinha cursado todos os colégios e universidades de sua nação. Era conhecido como ‘O cientista da cabeça grande’. Entre muitas outras coisas, ele aprendera como procriar raças cientificamente. Esse cientista da cabeça grande, Sr. Yacub, começou a pregar nas ruas de Meca, fazendo tantos convertidos que as autoridades, cada vez mais preocupadas, finalmente exilaram-no com 59.999 seguidores para a ilha de Patmos, descrita na Bíblia como a ilha em que João recebeu a mensagem contida no Livro do Apocalipse, do Novo Testamento. Embora fosse um homem preto, o Sr. Yacub, agora amargurado com Alá, decidiu como vingança criar sobre a Terra uma raça demoníaca, uma raça de gente descorada, de homens brancos […] O Sr. Yacub, para desequilibrar a lei da natureza, concebeu a ideia de usar o que hoje conhecemos como a estrutura de genes recessivos, a fim de separar os dois germes, preto e pardo, enxertando em seguida os germes pardos a estágios cada vez mais claros e fracos. Sabia que os humanos resultantes seriam, na medida que se tornassem mais claros e fracos, progressivamente mais sujeitos ao mal. E dessa maneira ele finalmente alcançaria a tencionada raça branca descorada de demônios.”

Perdoe a citação longa, atento leitor, mas só assim poderia reproduzir a teoria na qual, ao que tudo indica, muitos negros americanos ainda creem, e da qual me lembrei imediatamente ao assistir à recente série da Prime Video Them.

Na teologia da Nação do Islã, a “raça branca” é uma criação demoníaca

(Contém spoilers)

A série conta a história da família Emory, um casal com duas filhas, que, na década de 1950, migra do Sul rural para a California – mais especificamente para a Compton de Dr. Dre –, e vai morar numa vizinhança de brancos racistas num nível só explicável pela teoria da Nação do Islã descrita acima. A família, que carrega traumas psicológicos profundos, vai se envolvendo numa espiral de sofrimento que mistura o racismo sistemático que sofrem da crudelíssima vizinhança com questões sobrenaturais/psíquicas que cada membro, individualmente e à sua maneira, enfrenta. Henry Emory, um veterano da Segunda Guerra e engenheiro, consegue um emprego em que é humilhado constantemente pelo seu chefe imediato; Livia, sua esposa, está visível e profundamente depressiva – por motivos tristemente justificáveis, diga-se; e suas filhas, Ruby Lee e Gracie, também sofrem tanto os efeitos do racismo quanto dos traumas familiares inescusáveis. Eis o cenário em que se desenrola uma história mal roteirizada e mal dirigida que beira o sadismo gratuito. Explico.

O roteiro, que claramente tenta pegar carona no sucesso de Corra e Nós, de Jordan Peele, não consegue estabelecer uma boa conexão entre os elementos, digamos, naturais e sobrenaturais da história; há um excesso de informações e situações que vão se desenrolando e se misturando de maneira absolutamente inexplicável, maculando de superficialidade uma trama promissora. O sobrenatural e o natural se tornam indistinguíveis à medida que o território do trauma de um personagem vai se misturando ao dos outros e, pior, aos personagens totalmente alheios a tudo aquilo. A coisa torna-se inverossímil e perde a força. O mestre do horror literário, H. P. Lovecraft, explica melhor o que estou querendo dizer em O Horror Sobrenatural na Literatura:

“A história fantástica genuína [true weird tale] tem algo mais que um assassinato secreto, ossos ensanguentados ou algum vulto coberto com um lençol arrastando correntes, conforme a regra. Uma atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas desconhecidas precisa estar presente; e deve haver um indício, expresso com seriedade e dignidade condizentes com o tema, daquela mais terrível concepção do cérebro humano – uma suspensão ou derrota maligna e particular daquelas leis fixas da Natureza que são nossa única salvaguarda contra os assaltos do caos e dos demônios dos espaços insondáveis.” (grifo meu)

E ele arremata dizendo que “quando mais completa e unificada for a maneira como a história transmite essa atmosfera, melhor ela será como obra de arte num determinado meio”. O problema é que o horror em Them tem as pontas soltas e se mistura de forma irresponsável ao mundo natural, e falha, tornando-se, junto à violência desmedida (da qual falarei abaixo), mero recurso retórico.

A trilha sonora é muito boa, mas desnecessariamente exagerada. Há muitas músicas, e o cardápio de soul music vai sendo tocado de maneira quase aleatória, como numa espécie de exibicionismo cultural; ou para explicar as cenas, o que é um erro crasso no cinema. É o mestre Robert Bresson que diz, em Notas sobre o cinematógrafo: “Imagem e som não devem se ajudar mutuamente, mas que eles trabalhem cada um à sua vez, como numa espécie de revezamento”. A trilha sonora não pode ser uma playlist das músicas preferidas do diretor – ou da comunidade negra como um todo –, tem de fazer sentido para a trama.

Agora, o que mais impressionou a muitos – de desavisados a militantes profissionais – foi a extrema violência da série. Vi muita gente reclamando da tortura contra pessoas negras transformada em entretenimento, ou dos gatilhos (palavra da moda) que ela provoca – na geração assustada, claro. Little Marvin, o criador da série, usando o vocabulário próprio das ideologias do ressentimento, diz que “a série sempre foi sobre navegar no terror da branquitude. Não se tratava de explorar o trauma Negro. Tratava-se de navegar pelo terror da branquitude e, particularmente, do terror da supremacia branca neste país” (grifo meu). Com isso, dividiu opiniões; mas, a mim, mostrou ao que veio. Mostrou praticamente todos brancos como Filhos de Yacub – desmesuradamente malignos –, os fez torturarem sadicamente os negros, e provocou, na militância mais suscetível e exaltada, o sentimento de vingança que, aos poucos, vai tomando forma nos corações vazios de sentido.

Vi um comentário, numa rede social, dizendo que a série “demonstra o caráter monstruoso da branquitude”. Uma moça, mestiça, que provavelmente tem parentes brancos. Mas isso não importa, pois o ódio ao branco não é mais ódio à pessoa branca, tornou-se impessoal, ideológico e, como diz o filósofo Gabriel Liiceanu, em Do Ódio, “já não se odeia uma pessoa isolada, mas odeia-se uma pessoa como agente de uma categoria. Odeia-se uma hipótese englobadora […]. Odeia-se a alguém como: odeias alguém como burguês, como hebreu, como cigano, como intelectual, como islamita, como americano, como húngaro etc.”. E eu completo: como branco. E o pior: muitas pessoas brancas, também enfeitiçadas de ideologias do ressentimento e de um artificial sentimento de culpa, estão legitimando esse ódio e, como diz o ditado, cerrado o galho em que estão sentadas.

Aonde isso irá nos levar, só Deus sabe. Mas que essa série colocou mais um tijolinho na casa assombrada da militância revolucionária, isso ela fez.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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