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Fachada de loja da rede Magazine Luiza
Fachada de loja da rede Magazine Luiza| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo

O trabalhador deve trabalhar pelo enaltecimento do seu trabalho, não simplesmente pelo salário; o pensador deve pensar pela verdade, não pela fama. E tudo isso é obtido apenas através do esforço e do anseio humanos; através do treinamento e da educação incessante; da fundamentação do Direito na justiça, e da Verdade na busca sem peias da Verdade; através da fundamentação da escola elementar na universidade, e da escola industrial na escola elementar; criando assim um sistema, não uma distorção, e trazendo à luz um nascimento, não um aborto. (W.E.B. Du Bois)

Eu relutei para escrever sobre esse assunto, meu mui fiel leitor. Relutei porque, além de ter se tornado um tema enfadonho – no qual, curiosamente, liberais se tornaram socialistas e socialistas se tornaram liberais, alegando, respectivamente, a inconstitucionalidade da ação e a liberdade irrestrita da empresa privada –, eu já havia tratado de tema semelhante, relacionado a um programa de estágio da Google, aqui, nesta Gazeta do Povo. E, claro, porque as pessoas simplesmente se recusam a tratá-lo de forma racional – aliás, tema de meu artigo da semana passada. As justificativas vão desde estatísticas enviesadas à rotulação rasteira de racistas aos que discordam. O fato é que o tema continua sendo polêmico, mas pelas razões erradas. Permita-me tentar explicar.

Começando pelo começo, entendamos o caso: O Magazine Luiza criou um programa de trainee exclusivo para negros, com o objetivo, como afirmou a própria Luíza Trajano numa rede social, de dar “um passo importante para consolidarmos a diversidade na empresa”. Ou seja, trata-se, antes de tudo, de um interesse da empresa; diversidade, atualmente, gera prêmios e aumenta o valor de mercado das empresas. No site de cadastro há um manifesto, que apresenta as justificativas para o programa. Dentre outras coisas, diz o seguinte:

Todos sabemos sobre o passado ancestral da população negra no Brasil, a escravidão por décadas foi uma história que deixou reflexos sociais que distanciam, excluem e anulam pessoas negras de oportunidades e essas marcas podem ser sentidas em todos os espaços. Precisamos caminhar juntos nesse processo histórico que só pode ser reparado quando entendemos o impacto do que é estrutural e hoje queremos derrubar essa barreira de forma saudável através da oportunidade repaginando essa história com responsabilidade.

O Magazine Luiza parte de uma premissa que não corresponde totalmente à realidade

Fora o fato de dizer que a escravidão durou décadas e não séculos, o programa tem uma premissa no mínimo questionável. Atribuir a disparidade socioeconômica da população negra em 2020 à escravidão, que teve fim há mais de 130 anos, é uma atitude que, embora corriqueira, não leva em consideração que tivemos, desde o golpe militar-republicano de 1889, 38 presidentes da República que pouco ou nada fizeram para que esse quadro mudasse; muito pelo contrário.

A primeira Constituição republicana, que entrou em vigor menos de dois anos após o golpe (1891) e pouco mais de três anos após a abolição, não dizia absolutamente nada a respeito do projeto que os abolicionistas prepararam para a inserção dos ex-escravos na sociedade brasileira. A segunda Constituição, de 1934, influenciada pelos movimentos eugenistas que surgiram ainda no fim do século 19, falava em “estimular a educação eugênica”, que, para além das confusões entre higienismo e racismo – que tratei em meu artigo sobre o imenso Dr. Juliano Moreira –, também não diz nada especificamente sobre a situação da população negra e pobre, que sofria grande discriminação e marginalização, principalmente nos grandes centros. Posteriormente, leis declaradamente eugenistas entraram em vigor, como o Decreto-Lei 7.967, de 1945, que obrigava estrangeiros a se casarem somente com quem atendesse às “características mais convenientes da sua ascendência europeia”, num claro projeto de branqueamento da população.

É óbvio que nada disso impediu que parte considerável da população negra alcançasse ascensão social, estudando, conseguindo bons empregos e empreendendo. Como asseverou Alberto Guerreiro Ramos, em 1954, no ensaio O problema do negro na sociologia brasileira: “observe-se que, em nossos dias, graças ao desenvolvimento econômico e social do país, elementos de cor se encontram de alto a baixo, em todas as camadas sociais, e só em algumas instituições nacionais vigoram ainda fortes restrições para o seu acesso a determinadas esferas”. Não creio que o grande Guerreiro, com os conhecimentos que tinha, estivesse enganado ou mesmo mentindo. Diante de todas as adversidades, a população negra brasileira sempre foi, à medida do possível, conquistando seu espaço, apesar do descaso quase absoluto dos governos. E nem sequer estou falando de uma intervenção direta dos governos para a mudança do quadro socioeconômico do país, pois não creio nisso, mas nem mesmo uma política econômica que criasse condições de ascensão social plena das camadas mais pobres. No entanto, houve muitos avanços.

Portanto, o Magazine Luiza parte de uma premissa que não corresponde totalmente à realidade. Se o legado da escravidão foi a inferiorização do negro na sociedade brasileira, os anos republicanos consolidaram essa inferiorização, inclusive apoiando movimentos eugenistas.

Outro erro é falar de um “impacto do que é estrutural”, o que, provavelmente, é uma referência à teoria do racismo estrutural (do qual já tratei aqui, aqui e aqui). Mas, creio eu, há um problema estrutural ainda maior na sociedade brasileira, que é a prática comum do Estado de privilegiar grandes empresas em detrimento das pequenas e médias. Por exemplo, a própria Luiza Trajano ficou famosa por sua proximidade com a ex-presidente Dilma Rousseff, e sua empresa obteve muitas vantagens durante os governos petistas – como um financiamento de R$ 50 milhões, pelo BNDES, para revenda de computadores do programa Computador para Todos, e o programa Minha Casa Melhor, do qual a empresa de Trajano também se beneficiou e que gerou um prejuízo de mais de R$ 500 milhões aos cofres públicos. Isso, caríssimo leitor, é pior que racismo. Podem dizer o que quiserem aqueles que julgam tais fatos como ampliação de crédito ou mesmo como forma de proporcionar uma melhoria de vida material aos pobres. Só gostaria de lembrar que crédito sem emprego e uma economia estável é o mesmo que fornecer uma corda para alguém se enforcar.

Feitas essas considerações, vamos às justificativas de Frederico Trajano, filho de Luiza e herdeiro da empresa, no artigo “Por que criamos um programa de liderança só para negros” (assim mesmo, sem interrogação), no site Brazil Journal. Trajano inicia, sem qualquer constrangimento, com uma afirmação marqueteira: “O Magalu nasceu para incluir”. E, após mais algumas considerações de caráter propagandístico, ele diz:

Há anos, há uma característica do Magalu que nos incomoda. Temos um quadro de mais de 40.000 funcionários. Desse total, mais da metade são negros ou pardos. Eles estão em nossas lojas físicas, CDs, escritórios, e fazem parte da nossa comunidade de desenvolvedores. São vendedores, estoquistas, montadores, assistentes. Todos absolutamente essenciais. Mas onde estão os líderes negros e negras do Magalu? Infelizmente, eles são poucos e, por isso, quase invisíveis. Atualmente, apenas 16% dos representantes da liderança da empresa são negros. No comitê executivo, do qual faço parte, não há nenhum. Nosso conselho de administração – um exemplo em diversidade graças à alta participação de mulheres (são três, num total de sete) – também não conta com nenhum homem ou mulher negros.

No fim, o que eles estão fazendo não é oferecer oportunidades iguais, mas discriminando brancos para que negros disputem entre si

Os números são sempre impressionantes – mesmo tendo de contar com o polêmico conceito de autodeclaração. No entanto, após se perguntar onde está o problema e dizer que o número de inscrições de negros nos programas de trainee sempre foi baixíssimo, apresenta algumas justificativas: “Talvez porque, para muitos deles, passar num programa seletivo de uma grande empresa parecesse inatingível. Talvez porque nossa seleção exigisse certas competências – fluência em inglês, por exemplo – quase impossíveis de serem desenvolvidas por pessoas que frequentemente estão entre os mais pobres de nossa população”.

Aqui a coisa começa a complicar. Primeiro, porque dizer que uma pessoa à procura de emprego se sente intimidada por um processo seletivo é uma justificativa, para usar um termo de meu saudoso pai, mequetrefe. Depois, por dizer que a fluência em inglês é quase impossível de ser desenvolvida por quem é pobre. O que ele não diz é que apenas 1% da população brasileira é fluente em inglês (5% falam sem fluência). Ou seja, ou a fluência em inglês nunca foi um impeditivo no Magalu, ou o processo é extremamente restritivo e elimina não somente negros, mas praticamente todos os brasileiros.

Em seguida, à maneira de um militante, passa a condenar o que ele chama de meritocracia – outro conceito equívoco (como digo aqui) –, dizendo: “É como se nossos processos de seleção anteriores fossem como pistas de corrida em que o ponto de chegada era comum, mas certos candidatos já saíam com vantagem de alguns metros de distância sobre os demais. Alguns podem chamar isso de meritocracia. Eu e a comunidade do Magalu não concordamos. Meritocracia de verdade é legitimar a vitória daquele que, tendo as mesmas oportunidades que os demais, consegue chegar na frente – por talento e esforço pessoais”.

Frederico Trajano está nos dizendo que, nos processos anteriores, o Magalu não oferecia as mesmas oportunidades aos candidatos? Os trainees anteriores podem reclamar? No fim, o que eles estão fazendo não é oferecer oportunidades iguais, mas discriminando brancos para que negros disputem entre si. Mas isso não resolve, porque um negro que se inscrever e tiver conhecimentos de inglês em nível intermediário já iniciará com vantagem. Ou negros que se formaram na USP possivelmente terão vantagem sobre aqueles que se formaram em faculdades particulares (dessas que aprovam mediante pagamento). E mais: talento e esforço pessoal são vantagens de saída e não de chegada, apesar de pessoas sem talento e sem esforço também se formarem. Como diz Thomas Sowell – economista negro e um dos maiores intelectuais vivos, que os acadêmicos da justiça social insistem em ignorar, em Ação afirmativa ao redor do mundo: “As pessoas são diferentes – e isso ocorre há séculos. É difícil imaginar como elas poderiam não ser diferentes, uma vez que uma gama enorme de distintos fatores históricos, culturais, geográficos, demográficos e outros dá forma a habilitações, hábitos e atitudes particulares a grupos diferentes”.

Agora, a verdade inconveniente é que o programa do Magalu destina-se a uma elite – ainda que negra. Quase metade dos jovens negros nem sequer termina o ensino médio. E aqueles que conseguem terminar, numa escola pública de péssima qualidade, estão fadados ao subemprego e jamais chegarão ao ensino superior. Sowell corrobora: “Como as políticas de ação afirmativa são destinadas a compensar desvantagens econômicas existentes, seu objetivo é minado quando os benefícios de tais políticas se destinam desproporcionalmente para aqueles indivíduos dentro dos grupos indicados que estão em situação menos desvantajosa – ou talvez estejam em posição mais favorável do que os integrantes da população geral do país”.

Sou professor nos anos finais do ensino básico e sei bem qual é a realidade. Os excelentes alunos são raros, infelizmente (sem levar em consideração sua cor); e certamente chegar à faculdade já é uma vantagem e tanto, independentemente da cor. Por isso o alcance do programa de trainee do Magalu é irrisório, e passará longe, muito longe de “transformar essa história e cooperar para um cenário mais justo”, como dizem no site do programa. Isso é demagogia, num país em que mais da metade da população – a maioria negra – sequer tem saneamento básico.

A verdade inconveniente é que o programa do Magalu destina-se a uma elite – ainda que negra

Sem contar que, ainda que o processo do Magalu seja extremamente bem-sucedido e todas as vagas sejam preenchidas, nada garante o sucesso final do programa, pois muitas coisas podem ocorrer. Por exemplo: os trainees podem, todos, ser reprovados no fim dos 12 meses – fluência em inglês nesse tempo?; podem também simplesmente sair da empresa pouco tempo depois de serem efetivados. Ou seja, essa equidade que a empresa busca não é estanque. E tem mais, como diz Sowell:

Mesmo onde os dados estatísticos sobre o progresso dos grupos aquinhoados com tratamento preferencial são adequados – e quase sempre eles não existem –, permanece sendo um desafio determinar quanto do progresso se deve às políticas de preferências e não a outros fatores que estejam operando ao mesmo tempo. As simples comparações “antes e depois” não funcionam porque isso seria supor que nada mais havia mudado quando, na verdade, a própria dinâmica do estabelecimento de programas de ação afirmativa normalmente reflete alterações que já estavam se processando antes do início dos grupos preferenciais. Dificilmente existe uma situação estacionária à qual determinada “alteração” é adicionada.

Ou seja, se há 16% de funcionários negros nas posições de liderança da empresa – mesmo sem sabermos o quanto isso representa dos 53% do total de negros que lá trabalham, como informaram –, isso significa que o acesso não é impedido, mas, como é comum em cargos de liderança, são posições exigentes. Se hoje são 16%, seria preciso termos acesso a uma curva histórica para sabermos se esse número aumentou ou diminuiu; tais números não são estáticos. Se o Magalu não fizer absolutamente nada, esses números não crescerão? Quem pode responder? Se o número estiver em franca ascendência – o que não revelaram –, o programa pode não ter um efeito tão marcante assim. Pode até piorar, por oferecer cargos de liderança diminuindo o critério técnico que as funções normalmente exigem.

Daí que a falta de negros em cargos de liderança nas empresas se dá por uma série de fatores, muitos que não têm absolutamente nada a ver com o racismo, mas, por exemplo, com o modo como a política socioeconômica do país vem sendo conduzida há mais de um século – privilegiando grandes empresas como o Magalu e os Eikes Batistas da vida –, impedindo que pobres atinjam um nível de mobilidade social que lhes garanta um mínimo de dignidade. O pobre, que muito empreende, pouco prospera. É um país caro, em que não há, como dizia André Rebouças ainda no século 19 – em sentença que não me canso de repetir –, liberdade individual e espírito de associação, tema que também abordei em artigos como este aqui. A lógica da oligarquia e da corrupção aprisiona o pobre (negro, na maioria) nas posições mais vulneráveis, fazendo-o assumir o custo da mordomia de uma casta de políticos que só conhecem vantagens. O problema não é o Magalu, que só está tentando tirar vantagem de uma situação real.

E, por fim, quero levantar uma questão fundamental: a vocação – tema do qual também tratei aqui, nesta Gazeta do Povo, recentemente. Se, historicamente, a maioria dos negros do Brasil foi educada para exercer posições subalternas, é muito difícil vencer essa influência na mera busca por um salário melhor sem as condições vocacionais adequadas. Portanto, não se trata só da falta de oportunidade, mas da falta de perspectivas. Mudar isso exige uma reformulação profunda da educação do nosso país. Uma educação que amplie os horizontes dos menos afortunados, que capacite cada um vislumbrando suas habilidades mais evidentes e privilegie a vocação em detrimento do salário, por meio, como diz Du Bois na epígrafe deste artigo, “do esforço e do anseio humanos” corretamente direcionados. Essa é a chave para vencermos.

A lógica da oligarquia e da corrupção aprisiona o pobre (negro, na maioria) nas posições mais vulneráveis, fazendo-o assumir o custo da mordomia de uma casta de políticos que só conhecem vantagens.

Se o Magalu criasse um programa de educação para os filhos mais aptos ao estudo – sim, amigos pedagogos, há quem não goste de estudar – desses 53% de funcionários negros, oferecendo bolsas de estudo integrais, do fundamental à faculdade, em escolas de ponta, certamente teria um resultado mais efetivo para aumentar a diversidade e diminuir o preconceito. Mas, obviamente, não daria o marketing adequado e nem atingiria os verdadeiros propósitos da empresa, como disse Frederico Trajano: “somos uma empresa, não uma ONG, e estamos convictos de que a diversidade nos tornará uma companhia melhor, capaz de gerar mais retorno aos acionistas”. Ou seja, é o business, amiguinhos.

Ao fim e ao cabo, concordo com Thomas Sowell, que coloca os anseios dos militantes da justiça social e dos sinalizadores de virtude em seu devido lugar:

Crenças falsas não são pouca coisa, porque levam a soluções falsas. No campo da medicina, há muito se admite que mesmo uma falsa cura, altamente inofensiva em si mesma, pode ser catastrófica caso substitua a cura real para uma doença letal. Os proponentes da ação afirmativa não podem buscar consolo para suas suposições falsas na argumentação de que suas intenções eram boas, porque o charlatanismo social, da mesma forma, toma o lugar dos esforços reais para lidar com problemas autênticos que ameaçam despedaçar uma sociedade. A despeito de uma orientação para que seja perguntado o que “nós” podemos fazer por “eles”, aqueles que desejam ver o progresso dos negros em campos que necessitem de base matemática precisam confrontar esses negros com a necessidade de dominar a matéria, mesmo que isso signifique abrir mão de certas diversões e abandonar algumas atitudes como aquela que considera “agir como branco” o cumprimento dos deveres acadêmicos. É claro que isso não capitaliza amigos nem votos. Mas a pergunta é se há interesse em resultados para outros ou se apenas se almeja um sentimento íntimo de satisfação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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