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Cena do filme The Wall, de Alan Parker. Reprodução
Cena do filme The Wall, de Alan Parker. Reprodução| Foto:

“Vivemos numa era em que o sentimento de vazio se propaga intensamente. Nesta nossa época, a educação tem de cuidar não só de transmitir o conhecimento, mas também de refinar a consciência, de modo que o homem aguce o ouvido a fim de perceber as exigências e desafios inerentes a cada situação […] Porque isso não só faz com que sua vida se apresente novamente plena de sentido, senão que ele próprio também se imunize contra o conformismo e o totalitarismo – essas duas consequências do vazio existencial”. (Viktor Frankl, O sofrimento de uma vida sem sentido, É Realizações)

 

Em meu quinto artigo sobre educação, neste blog – os anteriores estão aqui, aqui, aqui e aqui –, tratarei, ainda seguindo a recomendação de Eric Voegelin para recuperarmos a realidade, da recuperação do fundamento da consciência.

Esses dias, após uma longa e proveitosa discussão, em sala de aula, sobre o politicamente correto, uma aluna veio conversar comigo e disse: “professor, eu não concordo com quase nada do que o senhor diz. Fico no maior conflito, mas tenho medo de me manifestar e o senhor não gostar”. Eu, felicíssimo por ela ter coragem de me dizer isso, respondi: “mas eu faço absoluta questão que você se manifeste! Você não só pode como deve dizer o que pensa. E, ainda que sua opinião seja completamente diferente da maioria, defenderei o seu direito de se posicionar; afinal de contas, sei que alguns assuntos que trago para discutirmos são polêmicos e não aceitam soluções fáceis. É esse o meu papel aqui, ajudá-los a compreender o que e como pensamos o que pensamos; pois é assim que construímos uma base sólida de conhecimento: ‘estressando’ nossas opiniões para que se tornem convicções ou, ainda, que sejam corrigidas por uma verdade mais objetiva ou mesmo pelo bom senso. Pensar de modo filosófico é isso”. A boa e velha dialética socrática.

Assim tenho feito desde que tornei-me professor, pois notei que o jovem de hoje oscila entre dois desejos antagônicos: aquele mais natural e conhecido de opinar sobre tudo, e outro, ainda mais forte atualmente, de não opinar sobre nada, de não ter convicções, de não se envolver e se manter a uma distância segura das responsabilidades que a vida, nessa idade, já começa a lhe impor. E nesse período tão crítico que nosso país vem atravessando, de total descrédito institucional, de falência da moralidade pública e privada, esse niilismo pode ser fatal. Não que os alunos devam, por força das circunstâncias, ter um posicionamento político-partidário, ou que devam se definir, urgentemente – a fim de cerrarem fileiras no acirrado debate público atual – como “de direita” ou “de esquerda”; mas que percebam que um país melhor só é possível se nos responsabilizarmos por construí-lo. Nesse ponto, a educação tem um papel fundamental, como diz C. S. Lewis, de “irrigar desertos”.

O que percebo, em grande parte dos jovens de hoje, é um comportamento que me lembra Bartleby, personagem do conto homônimo de Herman Melville, publicado pela primeira vez em 1853. Bartleby é um jovem escriturário – “levemente arrumado, lamentavelmente respeitável, extremamente desamparado” – que, pouco tempo após ser contratado, por um escritório de advocacia em Wall Street, passa a se recusar a fazer o seu trabalho. De início, cumpre freneticamente o seu ofício – fazer cópias de documentos. Porém, à primeira solicitação para que faça algo além de seu mecânico trabalho de copista, ele responde, laconicamente, com aquele que se tornaria o bordão oficial dos procrastinadores: “Acho melhor não”.

O dono do escritório não acreditou no que ouviu: “Fiquei sentado por algum tempo em silêncio, atônito, procurando me recompor. Então achei que meus ouvidos tinham me enganado, ou que Bartleby não tinha entendido minhas palavras. Repeti o pedido com a maior clareza que consegui. Mas a resposta veio ainda mais clara, ‘Acho melhor não’”. (p. 09, edição da Cosac Naify). E a partir desse momento, Bartleby se negaria, peremptoriamente, a obedecer qualquer ordem, a acatar qualquer pedido; parado de modo quase catatônico atrás de seu biombo, resiste bravamente a todos os apelos que lhe chamam à responsabilidade. “Acho melhor não”, é o que responde a tudo. Está lá, todos os dias, é o primeiro a chegar e o último a sair, mas não faz rigorosamente nada.

Entretanto, o experiente advogado que o contratara, por algum misterioso motivo, não consegue reagir a tamanha afronta de seu novo funcionário, e o deixa lá. Vez por outra tenta tirá-lo de seu estado sorumbático, mas não consegue; “acho melhor não” é o que ouve, sempre. Os colegas de trabalho se irritam com a falta de atitude do chefe, mas nada muda, Bartleby parece exercer um estranho poder sobre ele:

 “Nada irrita mais uma pessoa honesta do que a resistência passiva. Se o indivíduo ao qual se resiste não for desumano, e o que resiste, inofensivo, então o primeiro, com a maior boa vontade, vai se empenhar para que a sua imaginação construa com caridade aquilo que foi impossível resolver com a razão”. (p. 12).

Curiosamente, essa parece ser a atitude dos professores – eu incluso – diante da inércia dos alunos: um misto de dó e impotência. Se enchemos a lousa para que copiem a matéria, eles o fazem com uma espécie de resignação obstinada. Mas ao primeiro pedido para que rompam o casulo no qual seus cérebros dormem, respondem: “acho melhor não”. E ainda que barganhemos sua participação naquilo que eles, efetivamente, estão ali para fazer, eles o fazem com aquela postura do menino da historieta que, obrigado pela mãe a se sentar à mesa, responde: “por fora estou sentado, mas por dentro estou em pé”. Conclusão: não se produz conhecimento assim. E se a maioria, infelizmente, se comporta dessa maneira, a escola deixou de ser um ambiente que transmite/produz ciência.

Por isso fico radiante quando um aluno me interpela, discorda, se manifesta, briga para legitimar sua opinião; pois é aí que minha tarefa de professor de filosofia se inicia – socraticamente, procurando compreender a gênese de suas ideias. Mas, cada vez mais, é preciso um esforço quase descomunal para que isso ocorra.

Em Bartleby, tal absurdidade permanece até que o chefe decide demitir o teimoso escrivão, mas ele não vai embora – alias, está dormindo no escritório desde que fora contratado. Desesperado, o advogado resolve então mudar o escritório; retira tudo, muda-se, mas Bartleby permanece lá, imóvel. Até que é preso por vadiagem e, na cadeia, morre – talvez de inércia.

O filósofo romeno Constantin Noica escreveu uma obra notável que trata, dentre outras coisas, dessa paralisia existencial tão presente na modernidade. Em As seis doenças do espírito contemporâneo (BestBolso) – um curioso tratado de ontologia em linguagem médica –, ele lista seis “doenças” que acometem os espíritos modernos, três de carência, três de recusa: Catolite (do grego kathoulou: geral), que é a carência do geral; Todetite (do grego tode-ti: particular, individual), que é a carência do individual; e Horetite (do grego horos: termo, determinação), que é a carência de determinações adequadas. Derivadas dessas, a Acatolia, a Atodécia e a Ahorecia, são as doenças provenientes da recusa consciente do geral, do individual e das determinações adequadas, respectivamente. A obra é uma pequena maravilha (tem menos de 200 páginas) e deve ser lida por todos os que se interessam por filosofia. Mas, para nossa análise, abordaremos somente a ahorecia, que, para mim, é a doença da qual padecem os alunos – e grande parte dos brasileiros dessa geração, diga-se.

Noica usa outro exemplo para caracterizar a ahorecia, a peça Esperando Godot, de 1949, escrita por Samuel Beckett, expoente do Teatro do Absurdo. Porém, penso que Bartleby, escrito quase um século antes, é o precursor do gênero e nos sirva melhor. De acordo com Noica:

“[…] é o absurdo contemporâneo que lesa o ser mais profundamente, e com ele o verbo, pois, desorganizando-lhe e até destruindo as determinações e, mui particularmente, a comunicação, este corre o risco de já não poder exprimir nada exceto o não-dizer (como no teatro de Ionesco)”. (p. 38).

É constrangedor fazer uma pergunta, levantar uma questão e os alunos ficarem olhando, sem nada dizer, como se não estivéssemos ali. O “acho melhor não” é dito sem palavras, só com o olhar – o que torna a situação ainda mais dramática para o professor. Essa recusa ao conhecimento é, arrisco dizer, também um sintoma da “liberdade caótica das determinações” pregada pelos filósofos contemporâneos – falo disso no artigo anterior. Diz Noica:

“O existencialismo contemporâneo parece ter apreendido o aspecto trágico dessa liberdade que pode fazer tudo, mas dilacera por jamais saber o que é para fazer […] A poder de dar livre curso a todas as mensagens, acabou-se por exprimir a ausência de mensagem, e, como a própria ausência de mensagem parecia ainda comunicar alguma coisa, descobriu-se a antipalavra, o anti-sentido, o antidiscurso da antinatureza e do anti-homem”. (p. 38, 40).

Ao responderem “acho melhor não” a tudo, o que será dessa geração ou mesmo do futuro do país? Diante do debacle civilizacional que vivemos, como reagirá essa geração quando não mais puder se esquivar às responsabilidades? Não se trata só daquela rebeldia juvenil contra a ordem ou as determinações da sociedade. A coisa se agrava, e já é possível perceber os frutos desse comportamento naqueles que estão chegando à vida adulta sem qualquer perspectiva. E apesar dos estudos, como sempre, apontarem causas sociais para o aumento da chamada geração nem, nem, julgo que o problema seja existencial, de falta de consciência do sentido da vida.

Noica, que publicou seu livro em 1978, diz que a ahorecia é curada com a maturidade. Porém, a vida não pode se resumir a um simples “assunto de biologia”; deve haver um incremento de conhecimento, de sabedoria virtual, fruto de uma “disponibilidade ativa”. Diz ele:

“Todo homem está suspenso numa virtualidade – e até certo ponto é bom que seja assim, que esteja a salvo de afirmações de si desprovidas de maturidade. Mas como fazer durante todos os anos jovens para que, suspensos nessa virtualidade, nessa disponibilidade ativa, não sejamos, contudo, seres mutilados? Eis aí toda a sabedoria dos inícios, ao passo que a do fim consiste, ao contrário, em libertar nossas forças criadoras. Os que envelhecem com plenitude – pouco numerosos, mas tão essenciais para o mundo – envelhecem como ‘supernovas’ da humanidade: luzem com brilho sem igual e extinguem-se numa terrível explosão”. (p. 137).

Portanto, ainda que o problema tenha se agravado e nossa juventude esteja quase completamente mergulhada no Nada, cumpre-nos resistir e agir. Devemos lutar para tirá-los desse vazio existencial que leva ao conformismo e/ou ao totalitarismo – como diz Viktor Frankl na epígrafe deste artigo.  É necessário que os alertemos, insistentemente, que o niilismo, a ahorecia, o “acho melhor não”, mata o espírito. É preciso que reconheçamos e os façamos reconhecer, antes de tudo, que a vida é um legado que se recebe, se incrementa e se transmite, pois não somos causa e nem destino do mundo. Nesse sentido, o grande desafio para transformarmos em terra fértil o árido terreno existencial do jovem de hoje, é provocarmos uma retomada do fundamento de sua consciência e de sua função na percepção do mundo e de si mesmos.

Só é uma pena que, atualmente, haja uma quantidade enorme de professores mergulhados nesse mesmo materialismo e niilismo inócuos, para os quais todo fundamento metafísico é burguês e autoritário, e que a transformação é social e não espiritual. Cumpre-nos resistir a esses também.

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