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Cena de "Uma vida oculta", de Terrence Malick.
Cena de “Uma vida oculta”, de Terrence Malick.| Foto: Divulgação

Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me; porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma? (Mateus 16, 25-26)

Já é de conhecimento do nobre leitor, por causa de artigos que já escrevi aqui, nesta Gazeta do Povo, a minha enorme admiração pelo cinema, pela arte do cinematógrafo; cineastas como Andrei Tarkovski, Ingmar Bergman e Carl Dreyer são uma influência marcante não só em minha maneira de compreender a arte, mas também de vislumbrar o drama humano e sua relação com Deus. Na atualidade, dos ainda vivos, poucos diretores exercem tal poder sobre mim como o recluso americano Terrence Malick, que agora, após três filmes que, não sem grande controvérsia com meus amigos cinéfilos, considero menores (Amor pleno, O cavaleiro de copas e  De canção em canção), retoma, com Uma vida oculta, a profundidade espiritual de Além da linha vermelha e sobretudo, A árvore da vida – este último, para mim, uma das maiores obras cinematográficas já realizadas, sobre o qual já escrevi após assisti-lo uma dezena de vezes.

Dessa vez Malick aborda, mais uma vez corajosamente, o tema da fé – e do mal – tomando por base a vida de Franz Jägerstätter (1907-1943), um fazendeiro nascido num pequeno município chamado Sankt Radegund, na Alta Áustria, que foi um objetor de consciência, recusando-se a jurar lealdade a Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, e foi condenado à morte. Franz deixou uma esposa, Franziska Schwaninger (1913-2013) e quatro filhas – a mais velha, de outra mulher. Em 2007, o papa Bento XVI o beatificou.

Franz sabia que aquela guerra era errada e que assumir uma posição nela era concordar com Hitler

O filme foge, como se poderia esperar de Malick, de apresentar uma biografia tradicional de Franz Jägerstätter, mas propõe uma longa meditação – de três horas – a respeito da resistência ao mal. Logo no início, após Franz ter retornado do treinamento militar, os nazistas chegam ao vilarejo a fim de recrutar moradores; Franz se mostra extremamente incomodado, principalmente com a empolgação do prefeito, e, num diálogo aos sussurros com um morador também preocupado, ouve deste: “eles não reconhecem o mal quando o veem?” Para mim, esta é a chave para o filme, uma vez que, à medida que o tempo vai passando, os moradores do vilarejo vão sucumbindo à necessidade de “lutar pela pátria”, enquanto Franz vai percebendo que aquela era uma guerra injusta, na qual muitos inocentes estavam morrendo. Assim como o teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer ou o padre Alfred Delp, Franz Jägerstätter percebeu, como diz o filósofo Eric Voegelin, em Hitler e os alemães, que “as igrejas não foram capazes de defender a dignidade do homem; não apenas de defendê-la com sucesso, mas nem sequer de defendê-la – porque eles próprios, leigos e clérigos, também foram participantes dessa corrupção, mesmo que num grau menor que o dos próprios nacional-socialistas. A Igreja foi incapaz de lidar com a situação de uma sociedade desumanizada porque a perda de realidade já acontecera dentro da própria Igreja”. Os padres e bispos, como o filme demonstra, se acovardaram em temor ao nacional-socialismo.

Foi num sonho que Franz percebeu o mal se aproximar. Ele sonhara com um trem que atraía crianças e ouviu uma voz que lhe disse: “Esse trem está indo para o inferno”. Ele sabia que aquela guerra era errada e que assumir uma posição nela era concordar com Hitler, que para ele era uma espécie de anticristo. Então, contra todas as circunstâncias, ele se nega peremptoriamente a jurar lealdade ao Führer e ir à guerra. O ator August Diehl, que faz o papel de Franz, ao ser perguntado numa entrevista que tipo de lição sobre o Holocausto os jovens podem tirar dessa história, diz algo interessante: “a coisa não é tanto sobre o Holocausto, é algo mais geral; é sobre alguém – e isso é interessante, pois essa é uma coisa que ficou martelando em minha cabeça o tempo todo – que diz ‘não’. E isso é tudo”. E complementa:

Isso está, cada vez mais, faltando em nossa sociedade, porque tenho a sensação de que todos estamos pulando em um trem de “sim”; e isso estava em minha mente. E nossa história com Franz Jägerstätter, você sabe... ele não tinha um plano político – como Gandhi ou outras pessoas que salvaram judeus ou agiram de verdade; ele estava apenas, como uma criança que, vendo que algo está errado, diz “não”, porque sentia que aquilo era errado. Isso é algo muito poderoso, porque é simples. E isso acabou por criar algo político […] Não precisamos de grandes revoluções; às vezes precisamos apenas dizer “não” a algumas coisas, e isso criará algo.

E dou fé, caríssimo leitor, que Terrence Malick consegue, naquele ritmo absolutamente contemplativo, nos mergulhar pouco a pouco na grandiosidade espiritual do ato de Franz Jägerstätter, em seu “não” resoluto capaz criar algo, de mostrar ao mundo que, como ele mesmo dizia sempre que era instado a se lembrar das palavras do apóstolo Paulo aos romanos, de que toda autoridade foi constituída por Deus e, por isso, lhe devemos obediência (Rm 13), de que “mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5,29). A esposa Franziska (Fani) – a devota jovem que se casara e convertera um rapaz que, quando solteiro, levava uma vida aventureira com sua moto, flertando com muitas garotas –, apesar de lutar com sua decisão radical, parece compreendê-lo, e resiste bravamente às investidas cada vez mais violentas dos vizinhos contra ela, as filhas e a sogra, pois consideram seu marido um traidor.

Franz e Fani formavam um belo e exemplar casal, que se amava verdadeiramente e cujo amor estava guardado em Deus; e faziam questão de demonstrá-lo em público. No documentário Franz Jägerstätter – man of conscience, de 2009, Fani, já idosa, diz que os vizinhos ficavam admirados em vê-los sempre indo à missa de mãos dadas. As cartas, de onde Malick tirou a maior parte dos trechos narrados, são um capítulo à parte. Nelas as demonstrações de amor são muito comoventes e, no filme, contrastam com o sofrimento que vai se intensificando. Nelas também transparecem o amor das e pelas filhas, como nesta, de 9 de outubro de 1940 – quando ele estava em treinamento:

Querido marido:
Saudações em Deus, que fará tudo dar certo novamente. Saudações de suas três pequenas mulheres. Elas dizem para só contar as coisas boas que estão fazendo… claro. Mas eu não o surpreenderia se falasse de sua desobediência […] Tenho de ralhar com as meninas. Estão sempre exigindo minha atenção. […] Rosi sempre pergunta de você. Quando vamos para a cama, ela diz: “Deixe a porta destrancada, assim papai poder entrar”. Durante as refeições: “guarde um pouco para o papai”. Ela cantou uma canção para você e perguntou se você poderia ouvir. Ela queria levar uma foto sua para a cama com ela esta noite, dizendo que você dormiria ao seu lado. Eu disse a ela que quando o papai chegar em casa, ele fará isso. Calorosas saudações de sua amorosa esposa,
Fani

A violência é apenas sugerida, mas a beleza, essa sim é absolutamente exposta e proeminente

É emocionante demais a maneira delicada com que Malick vai construindo e nos apresentando a história. A violência é apenas sugerida; Franz nunca aparece sangrando – apesar de ter sido severamente torturado –, pois Malick quer nos impressionar com uma maldade mais intrínseca do que extrínseca. Mas a beleza, essa sim é absolutamente exposta e proeminente – através das locações belíssimas na província italiana de Tirol do Sul e da direção de fotografia competente de Jörg Widmer. A trilha sonora clássica (composta por James Newton Howard) e a aposta nas câmeras angulares e nos contra-plogées (quando a câmera está abaixo do nível do olhar, apontando para cima) são uma marca registrada de Malick que irrita alguns, mas muito me agrada, pois deixa tudo mais solene, mais bonito. O final é arrebatador, pois nos mostra a força do amor e o triunfo da Verdade e do perdão.

Dietrich Bonhoeffer, que também resistiu ao nazismo e, após participar de dois atentados frustrados contra Hitler, foi preso e enforcado – se não conhece sua história, pode saber um pouco mais aqui –, numa de suas anotações da prisão, diz:

Temos sido testemunhas mudas de atos criminosos; tivemos de recorrer a muitas artimanhas; aprendemos as artes da dissimulação e da fala ambígua; por experiência ficamos desconfiados das pessoas e muitas vezes tivemos de lhes ficar devendo a verdade e a palavra franca; conflitos insuportáveis nos deixaram cansados e talvez até mesmo cínicos – ainda somos aproveitáveis? Não é de gênios, nem de cínicos, nem de desprezadores de pessoas, nem de táticos sutis que necessitaremos, mas de pessoas singelas, simples e retas.

Franz Jägerstätter, o homem que disse “não”, foi uma dessas pessoas. E o filme de Terrence Malick nos mostra, de maneira bela e genial, que o mal não resiste à coragem de ser.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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