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Das caixas de comentários da internet ao discurso de sindicatos, é popular a tese de que o ajuste nas contas do governo é desnecessário porque bastaria “auditar a dívida pública”. Com ares de teoria da conspiração, o argumento é um conjunto de falácias ao redor da ideia de que boa parte dos impostos é usado para pagar uma dívida desconhecida e impagável, em prejuízo da sociedade. Esses pagamentos seriam o real problema do país, e a auditoria, sua solução. É terraplanismo econômico.

Balela 1: Metade dos impostos vão para a dívida pública

Essa lenda urbana corre solta no WhatsApp, representada por um gráfico como este abaixo. Ele apresentaria as despesas do governo, a maior parte (sempre em amarelo) sendo a dívida pública.  Dessa premissa, sairia a conclusão natural: por que reformar a Previdência ou mexer no funcionalismo se a maior parte do gasto é outra e não beneficia a população?

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Essa informação ultrapassa o debate político e chegou a embasar uma constrangedora decisão da Justiça Federal no ano passado, ordenando o Congresso a fazer uma auditoria.

Por que este argumento é falacioso?

Na realidade, desde 2014 o governo federal não produz superávits primários. Quando superávits primários ocorrem, o governo economiza dinheiro dos tributos para pagar a dívida. Só deixaremos de produzir déficits primários em meados da próxima década e se uma ampla agenda reformas – Previdência a frente – for implementada.

Estes sucessivos déficits primários significam o contrário do que é normalmente veiculado: o governo não consegue fechar com tributos (impostos, contribuições) as contas com funcionalismo, previdência, educação, saúde, etc. Esse buraco é resolvido recorrendo ao mercado financeiro para cobrir a diferença (o déficit primário).

 

Isto é, não é verdade que o governo economiza recursos, por exemplo, da educação e da saúde, para dar para o mercado financeiro. É o contrário: o mercado financeiro paga as contas das despesas primárias, como educação e saúde, emprestando dinheiro.

A dívida pública que vence é até paga, mas com emissão de mais dívida, e por isso a dívida cresce. Novamente: o que o discurso de auditoria sugere é o contrário, que o governo deixa de gastar com áreas essenciais para economizar e pagar juros da dívida pública (superávit primário).

De onde vem então os dados do gráfico de pizza?

Como todas as despesas pagas pelo Estado precisam tramitar pelo orçamento, também os pagamentos da dívida constam dele, mesmo sendo pagos com mais dinheiro emprestado, e não com a arrecadação de impostos. É por isto que normalmente se distingue entre resultado/superávit/déficit primário e resultado/superávit/déficit financeiro, distinção que não interessa a quem aposta na narrativa da auditoria.

Imagine que João tem uma dívida grande: ele tem de pagar R$ 2 mil de dívida todo mês ao banco A, mas seu salário é de R$ 3 mil. Sobra pouco se for pagar a dívida. João conseguiu um empréstimo no banco B, que vai dar a ele R$ 2 mil todo mês para pagar a dívida com o banco A. Assim, João usa um empréstimo para quitar outro e não tira do seu salário.

Pela lógica do papo de auditoria, João está gastando 40% da sua renda com dívida. Isso porque a auditoria misturaria o salário de R$ 3 mil com o empréstimo de R$ 2 mil, totalizando R$ 5 mil. Onde já se viu João gastar 40% do seu orçamento com dívida em vez de com educação ou saúde?

Ou seja, há uma grande confusão sobre o que significa “orçamento”. Para quem recebe a informação como a do gráfico de pizza, orçamento é o conjunto das despesas financiada pelos tributos. Mas não é isso que o gráfico representa.

Com muito boa vontade, pode-se dizer que havia algum fundo de verdade nessa história quando o país produzia superávits primários. Quando o governo tem superávits primários, de fato uma parcela da arrecadação tributária é destinada para pagar a dívida, exatamente para controlá-la.

Há aí sempre um debate legítimo sobre o montante que é destinado: ele é excessivo, sacrificando demasiadamente gerações atuais em benefício de futuras gerações? Devemos reduzir a dívida ou apenas estabilizá-la? Este não é apenas um debate político, mas também um rico debate acadêmico.

Só que ainda assim os números veiculados estariam inflados.

O gráfico abaixo apresenta o resultado primário como participação da receita corrente, ou seja, a parcela da arrecadação de tributos que é poupada anualmente para o pagamento da dívida. O resultado primário é negativo (déficit) desde 2014.  Se de fato ele já foi de 12% em 2008, mesmo este percentual está muito abaixo do percentual veiculado, por exemplo, pela turma da auditoria. No gráfico, a trajetória “correta” é comparada com a mera relação entre despesas financeiras e despesas totais.

Resultado primário como participação da receita corrente – 2007 a 2016

Em verdade, a suposição de que 40% ou 50% dos impostos são usados para pagar a dívida é tão absurda que de pronto implicaria que o Brasil teria uma carga tributária estratosférica, de cerca de 50% do Produto Interno Bruto, fosse verdade que os pagamentos da dívida são inteiramente pagos com a arrecadação tributária. Na realidade, a dívida já teria sido quitada há muito tempo.

Igualmente, um gráfico de pizza para o lado da arrecadação, e não somente o da despesa (como frequentemente divulgado), teria uma parcela ainda maior referente à dívida do que o próprio gráfico da despesa, uma vez que estamos com déficit primário. Este exercício é feito no gráfico seguinte, colorindo em amarelo a parcela da dívida – como tradicionalmente é feito nesta discussão.

Receita da União – 2017

O melhor texto desmistificando essa balela é desta Gazeta, de Fernando Jasper. Outros incluem o do Mercado Popular e do Spotniks.

Embora seja normalmente veiculada pela esquerda, ela é questionada até por economistas do PSOL, que criticam a fraude contábil e a ideia de criminalização da política fiscal (pois tendem a ver no endividamento um importante instrumento para o desenvolvimento).  David Deccache e José Luís Fevereiro do PSOL,  Rafael Bianchini do PT, além de Laura Carvalho, ex assessora de Guilherme Boulos, são alguns dos economistas de esquerda atuantes no debate que repudiam essa informação.

Balela 2: A dívida pública nunca foi auditada

Imagine se centenas de bilhões fossem pagos todo ano sem que ninguém soubesse do que se tratava. A tese parece estapafúrdia? Pois é. Além do Congresso Nacional, o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) controla esses gastos.

Ano passado, o TCU divulgou uma ampla auditoria sobre o tema. Os resultados nada têm a ver com o que o pessoal da auditoria diz. Por que então se diz que “a dívida nunca foi auditada”?

No caso do movimento formal “Auditoria Cidadã da Dívida”, a auditoria verdadeiramente defendida inclui uma revisão dos juros compostos (“anatocismo”), considerados ilegais e pagos quando o governo pede dinheiro emprestado (incidindo juros) para pagar outro empréstimo (em que incide juros).

Isso tenderia a levar ao calote parcial da dívida (renegociação), com sérias consequências para a economia.  O movimento, porém, não aceita o termo calote.

A ideia do calote é especialmente sem sentido neste momento. Não estamos ainda em um extremo como os de Grécia ou Venezuela, em que mesmo economistas “de direita” sugeriram o calote. Se o mercado empresta recursos para que o governo pague despesas primárias, como ficaria o financiamento de diversas políticas públicas sem este dinheiro? O nome fofo de uma “auditoria cidadã” poderia objetivamente ter consequências perversas: o calote interromperia uma fonte importante de recursos para o Estado brasileiro.

Assim, o argumento de auditoria vem sendo usado como um escudo de servidores públicos contra mudanças salariais e em sua previdência privilegiada.  A agenda política por trás da auditoria é revelada em seu próprio site, que sugere que o movimento foi criado para preservar servidores públicos de ajustes fiscais: “Devido à estreita relação entre a subtração de recursos para o pagamento de juros e amortizações da dívida e os constantes ataques aos servidores públicos.

Balela 3: O Brasil é rico

O pote de ouro no fim do arco íris prometido pela auditoria se relaciona não apenas com a grande quantidade dinheiro drenada para a dívida, mas também com a suposta riqueza do Brasil – por ser uma das maiores economias do mundo. Como o país seria rico e teria dinheiro, bastaria combater este desvio para que tudo fosse resolvido.

Aqui entramos em uma matemática simples: embora o Brasil seja uma das 10 maiores economias do mundo, também é uma das 5 maiores populações. O PIB não deve ser confundido com o PIB per capita, em que o Brasil mal está entre as 80 maiores. Nesse sentido, somos tão ricos quanto Iraque, Botswana, Bielorússia, China, Palau, Azerbaijão, Turcomenistão, Barbados, Montenegro, República Dominicana, Tailândia.

Você gostaria de trabalhar na Índia ou na Islândia? A Índia, pela Auditoria Cidadã da Dívida, seria um dos 3 países mais ricos do mundo, e a Islândia um país pobre, que não está nem entre os 150 maiores PIBs. Mas a Índia tem uma das maiores populações do mundo, por isso em parte o PIB alto. No ranking do PIB per capita, a Islândia é um dos mais ricos, a Índia mal está entre os 120.

Estamos falando de uma média simples: dividir o PIB pelo total da população. Uma casa com renda de R$ 15 mil em que moram 15 pessoas é mais rica do que o vizinho solitário que ganha R$ 5 mil?

Até Bolsonaro já defendeu a auditoria

O argumento, de apelo populista, encontra adeptos por todo o espectro ideológico. Em um país com crônica taxa de poupança, o papo de auditoria de devedores seduz. Embora tenha como base uma organização – a Auditoria Cidadã da Dívida – a difusão da ideia parece orgânica e espontânea (a presença da entidade nas redes sociais é incipiente, e os materiais, como o gráfico, até toscos).

A tese é simples de ser compreendida, oferece uma solução indolor e aponta um inimigo. É o exato oposto da reforma da Previdência: complicada, associada a perdas e sem vilões para se apontar.

O próprio presidente Jair Bolsonaro em tempos recentes, mas ainda pré-Paulo Guedes, apostava na auditoria: “Auditoria da dívida pública? Qual o problema? Tem gente que se diz em prol do Brasil que não vai gostar”.

Por fim, cabe uma ressalva sobre o movimento Auditoria Cidadã da Dívida.  Sua posição evoluiu e está mais consistente, condizente com a sequência de déficits primários. Assim como a Associação de Auditores da Receita (Anfip) fala cada vez menos em “superávit da Previdência” e mais em “reforma tributária solidária”, a Auditoria parece caminhar para argumentos mais qualificados na defesa de sua agenda.

Hoje a Auditoria Cidadã enfatiza mais uma crítica à política monetária (o sobreuso de operações compromissadas no combate à inflação), que economistas ortodoxos também fazem em algum grau. O argumento mais complexo, contudo, custa a se propagar.

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