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Ana Gabriella Amorim/ Gazeta do Povo
Ana Gabriella Amorim/ Gazeta do Povo| Foto:

Com o fim das eleições, volta ao noticiário a reforma da Previdência – já anunciada como prioridade pelo presidente eleito e seus prováveis ministros. Há anos, porém, este tema gera dúvidas porque uma tese popular nega a sua necessidade.

Inevitavelmente, a reforma de Jair Bolsonaro será criticada pelos que dirão que não existe déficit da Previdência. Ele seria uma farsa, um mito, uma falácia, uma mentira.

Este texto explica esta história em 10 pontos.

1) A diferença entre o que se arrecada com contribuições previdenciárias e o que se gasta com despesas previdenciárias será de R$ 185 bilhões em 2018. Ninguém nega isso.

Os que negam o déficit da Previdência absolutamente não negam que a diferença entre as contribuições e as despesas previdenciárias seja do valor divulgado pelo governo. Este valor é estimado em R$ 185 bilhões este ano, e em R$ 218 bilhões no ano que vem.

A arrecadação é basicamente as contribuições do trabalhador e da empresa sobre o salário. As despesas são as com aposentadorias, pensões e auxílios do Regime Geral (operado pelo INSS), tanto no meio urbano quanto no meio rural.

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Por que então se fala que o déficit da Previdência não existe? Porque se defende que outras receitas sejam computadas ou que despesas sejam excluídas, a depender da tese.

2) O Tribunal de Contas da União fez ampla auditoria na Previdência ano passado. Para o TCU, o déficit da Previdência é de centenas de bilhões.

O TCU tem um histórico de analisar o tema e, em um grande levantamento em 2017, concluiu que a contabilidade do governo é adequada.  O déficit seria de mais de R$ 200 bilhões no agregado de regimes previdenciários federais (incluindo o dos servidores) e também de mais de R$ 200 bilhões na Seguridade Social (grupo que inclui Previdência, Saúde e Assistência), em 2016.

Veja que não foi Michel Temer que criou esta contabilidade: ela foi a adotada também nos governos do PT e do PSDB,  e é aprovada anualmente pelo Congresso Nacional na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

O TCU concorda com ela e, portanto, não aceita nenhuma parte da contabilidade alternativa que alega haver superávit na Previdência.

3) A reforma da Previdência não visa diminuir o déficit, muito menos zerá-lo.

Nem na proposta original do governo Temer, considerada mais dura, as projeções oficiais apontavam que o déficit seria zerado. Nem sequer que seria reduzido. Com o envelhecimento da população, o déficit continua crescendo mesmo com reforma. O que uma reforma faz é atenuar este crescimento.

Assim, a própria importância de discutir o déficit merece ser relativizada: ao contrário do que opositores da reforma sugerem, ela não é defendida para zerar ou reduzir um déficit artificial supostamente fabricado.

A mera existência do déficit não é justificativa para a reforma da Previdência: o seu crescimento que é.

4) O déficit é uma medida de quanto do orçamento será retirado de outras áreas para a Previdência.

Qual a importância do déficit no debate então? Como é a diferença entre contribuições sobre a folha e despesas com benefícios, ele mede o quanto o governo tem que tirar do orçamento para pagar os benefícios. Quanto maior o déficit, mais tem que ser cortado de outras áreas. De maneira inversa, quanto menor o déficit, mais sobra para outras áreas.

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Isso porque, independentemente do déficit, o governo tem que pagar todos os benefícios. Além de corte nas despesas, o governo pode cobrir o chamado rombo aumentando impostos ou se endividando – como tem feito.

Perceba que esta métrica é importante mesmo que se aceitasse a contabilidade alternativa.  Podemos dar outro nome para o déficit e continuar medindo essa diferença entre contribuições e despesas. Alguns o chamam de necessidade de financiamento, resultado negativo ou cobertura de insuficiência financeira.

Suponha um nome qualquer para o déficit, por exemplo, bendegó.  Ainda que mudássemos a contabilidade para incluir novas receitas e retirar despesas, provocando um superávit, bendegó ainda seria uma medida de interesse. Como bendegó cai quando a arrecadação com as contribuições aumenta e sobe quando a despesa com benefícios cresce, bendegó indicaria o quanto tem que ser tirado do resto do orçamento para pagar benefícios previdenciários.

5) Mudar a contabilidade não resolve o problema.

Por muitos anos, o estado de São Paulo reportou não haver déficit na Previdência estadual, nem nas projeções do futuro (déficit atuarial). Também não haveria superávit. Ao invés disso, o resultado era sempre de equilíbrio: zero. Todos os anos.

O órgão responsável simplesmente considerava como receita o próprio déficit: o valor repassado pelo governo para cobrir a diferença entre receitas e despesas. Esta receita entrava como “cobertura de insuficiência financeira”.

Por esta contabilidade, nunca haverá déficit nem superávit. Mas isso não muda o fato de que anualmente o governo tinha que arranjar quase R$ 20 bilhões para pagar a tal “cobertura de insuficiência financeira”.

Trocar de contabilidade não adianta: o problema da Previdência é físico, pois é demográfico.

6) A campanha de 2017 que dizia haver superávit usou dados velhos, e a própria associação que a fez já admite que há déficit.

A proposta de Temer foi apresentada em dezembro de 2016, e a campanha contrária bombou em 2017. Ela dizia que não havia déficit na Previdência e era anti-reforma.

O que a propaganda do intervalo no Jornal Nacional não mostrava era que a própria entidade que calcula esses dados reconhece que havia um déficit no ano anterior, 2016. A Associação Nacional de Auditores-Fiscais da Receita (Anfip) simplesmente calculava o superávit apenas até 2015, muito embora estivéssemos em 2017.

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Mesmo com a contabilidade alternativa, os déficits começaram a aparecer a partir de 2016. Lamentavelmente, eles não foram alardeados como os supostos superávits. Os déficits são menores do que governo, mas são reconhecidos pela Anfip e teriam sido de R$ 60 bilhões em 2016 – ano anterior à campanha do superávit.

O dado para 2017 ainda não foi divulgado, embora estejamos em novembro de 2018. Ele também seria de R$ 60 bilhões.

7) A tese é essencial ao lobby dos servidores e advogados, que manobram a opinião pública.

Não apenas a Anfip, mas um grande conjunto de sindicatos de servidores (gourmetizados como associações) difunde a tese. É natural: qualquer reforma da Previdência passa pela discussão do sistema privilegiado dos servidores, que só foi parcialmente reformado no passado. Ele paga benefícios em condições muito mais vantajosas do que os da iniciativa privada, e a contribuição dos servidores só cobre 15% da despesa.

Como ele é pesadamente subsidiado pelo contribuinte – que pagam então 85% das aposentadorias e pensões a que sequer têm direito – é objeto preferencial de uma reforma da Previdência. Resta a grupos de servidores então negar a própria necessidade de reforma, e a teoria da conspiração do déficit prosperou.

A tese também é muito difundida no meio jurídico, e é usada não só em campanhas, mas nos próprios tribunais. Como o INSS é o maior litigante do país e dezenas de bilhões de reais em benefícios são concedidos judicialmente, o argumento é explorado pelos advogados e seu sindicato (vulgo OAB). Afinal, se a Previdência não tem déficit, o Judiciário pode ser mais generoso na concessão dos benefícios (que viram honorários).

Em relação à Anfip, frisa-se que há um inquestionável avanço em sua estratégia e de outras entidades. Em vez de manipular dados da Previdência para a opinião pública, ela tem focado na necessidade de ajuste pelo lado da receita. Recentemente lançou o livro Reforma Tributária Solidária, com um leque de medidas meritórias para aumentar a arrecadação, combater privilégios e reduzir a desigualdade.

8) É fake news que a DRU afete a Previdência.

A tese do superávit na Previdência se sustenta na ideia de que o governo desvia seu dinheiro para pagar outras despesas, por meio de algo chamado DRU – Desvinculação de Receitas da União.

Em um cenário de corrupção endêmica, é crível para muita gente que o dinheiro da Previdência seja desviado. Só que não é verdade. As contribuições previdenciárias feitas por empregados e empregadores não podem ser usadas para qualquer outro fim que não o pagamento dos benefícios previdenciários. É uma proibição da Constituição (art. 167, XI).

A DRU atinge apenas as chamadas contribuições sociais, carimbadas para a Seguridade Social (que não é sinônimo de Previdência, pois inclui ainda a Saúde e a Assistência).

Ainda que se considerasse Previdência e Seguridade como sinônimos, vale ressaltar que, mesmo considerando o impacto da DRU, a Seguridade também é deficitária.

Como o déficit da Seguridade chegou a quase R$ 300 bilhões em 2017, e a DRU foi de cerca de R$ 100 bilhões, um déficit de cerca de R$ 200 bilhões continuaria existindo. Ou seja, o que o governo retira ao longo do ano com a DRU, é coberto em proporção muito maior.

“Se não houvesse DRU, a seguridade social continuaria deficitária.” Quem diz? O governo Dilma Rousseff.

“O impacto da DRU sobre o resultado da previdência é nulo.” Quem diz? O TCU.

Na verdade, a DRU foi criada nos anos 90 para que o governo federal não tivesse que dividir sua arrecadação com estados e municípios. Em vez de aumentar impostos, que têm que ser divididos, aumentou contribuições, que só podem ser gastas com Seguridade – mas criando a DRU para que pudessem ser gastas em outras áreas.

Essa complexa discussão chegou recentemente ao Supremo: 23 estados e o Distrito Federal pedem o dinheiro da DRU, que não pertenceria portanto à Seguridade.

9) Quem nega o déficit defende cortes no orçamento da saúde e na assistência aos miseráveis.

Além da DRU, outra cortina de fumaça em que se baseia a tese do superávit é o uso da Seguridade Social. É outro nome que alude a tecnicismo e confunde. É essencial ressaltar: Seguridade Social não é igual à Previdência. Qual o sentido de dizer que não existe déficit na Previdência porque a Seguridade é superavitária? (já vimos que não é, mas esqueça isso por enquanto).

Se a Seguridade é composta também de Saúde e Assistência Social (ex: Bolsa Família), é lógico que se a receita da Seguridade deve cobrir o bendegó da Previdência menos recursos haverá para a Saúde e a Assistência.

Na prática, essas contribuições já são usadas para cobrir o déficit, que é a medida de desequilíbrio na Previdência. O que significaria então mudar a contabilidade? Carimbar estas receitas para a Previdência? Na ausência de reforma, o déficit subirá mais rapidamente e retirará mais recursos dessas áreas. Alterar a contabilidade, camuflando o déficit e impedindo reforma, provocará exatamente isso.

Alias, é irônico que grupos que defendam essa contabilidade, com potencial pra tirar dinheiro da Saúde, seja também os que propagam a mentira de que a emenda do teto corta investimentos nesta área (não corta).

10) A contabilidade alternativa some com o déficit dos servidores, com aposentadorias mais privilegiadas.

Vimos que a Seguridade Social é muito deficitária mesmo com a DRU. Como então se dizia que ela era superavitária até 2016? Simples: excluindo os servidores públicos da conta. Como o Plano de Seguridade Social do Servidor é altamente deficitário (lembre: as contribuições só cobrem 15% da despesa), a exclusão dele da conta melhora a despesa sem piorar muito a receita.

Os servidores não integram o cálculo do déficit do INSS, mas são considerados pelo governo no cálculo da Seguridade – que é como Anfip e outras entidades tratam do tema.

Assim, os superávits para a Seguridade que existiram até 2015 prescindiam desta operação. Os defensores da contabilidade alternativa alegam que a Seguridade do servidor não deve ser computada na Seguridade Social porque são tratadas em capítulos diferentes da Constituição. E?

A Constituição não desce em minúcias de contabilidade. A despesa tem claramente natureza de seguro social. O argumento ilustra como faz pouco sentido toda esta discussão: ainda que a Seguridade do servidor seja excluída, ela será paga de alguma forma pelo governo. É como passar dinheiro do bolso da frente para o bolso de trás.

Bônus: A Previdência urbana também é deficitária

Finalmente, um argumento diferente feito em relação à contabilidade da Previdência é relativo à separação entre Previdência urbana e rural. Desta vez, não há nada de DRU ou Seguridade: se aceita que o déficit é a diferença entre as contribuições previdenciárias e as despesas. Este não é o argumento da Anfip, advogados, etc.

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Por este argumento, mais legítimo, a divulgação do déficit da Previdência esconderia que a maior parte do déficit se encontra na Previdência rural, e não na Previdência urbana (é verdade). Os benefícios rurais seriam semicontributivos, com características de assistência (é verdade), e acabariam sendo subsidiados pelo contribuinte do INSS no meio urbano.

Foi este o argumento, por exemplo, do futuro ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni quando disse, em 2017, que não havia déficit na Previdência.

Só que a Previdência urbana também é deficitária: foram R$ 72 bilhões em 2017, mais de duas vezes o valor total do Bolsa Família.

Apenas por um curto período de tempo, entre 2009 e 2015, é que a Previdência urbana teve superávits nas últimas décadas. Embora o déficit seja explicado em parte pela queda da massa salarial (empregos x salários) com a recessão, a tendência é de déficits nos próximos anos, sem reforma. É na Previdência urbana que estão os maiores benefícios e a maior quantidade de novos benefícios, afinal o Brasil se urbanizou.

Por fim, lendas urbanas de superávit também citam que benefícios assistenciais ou trabalhistas entram na contabilidade da Previdência (como Loas, Bolsa Família, seguro-desemprego): isso não ocorre. Há ainda um legítimo argumento crítico de refinanciamentos e perdões a empresários e de devedores: eles não têm a ver com o déficit, mas é papo para outra coluna!

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