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Priscila Andrade/Divulgação
Priscila Andrade/Divulgação| Foto:

Ainda não assisti Marighella. Portanto, não posso opinar sobre o filme. Já tem gente dando nota ruim, em sites internacionais como o iMDB, a um filme que nem estreou no Brasil. Isso eu não posso fazer. Até porque, das minhas duas convicções sobre o assunto, uma delas é sobre o talento de quem, aos 42 anos, já se consolidou como um dos maiores brasileiros na história da sua profissão. Minha segunda convicção diz respeito a outra vocação de Wagner Moura, craque em falar bobagem sobre política.

O leitor pode ter pensado sobre Lula Livre, impeachment ou qualquer outra opinião escabrosa de Wagner Moura, que tem várias ao gosto do freguês. Eu, que devo ter escrito a palavra “previdência” em todas as colunas dos últimos meses, tenho uma mágoa mais profunda, já com 2 anos de idade.

Trata-se de um vídeo produzido pelo Brasil sem Medo, de Guilherme Boulos. Começa com “VOCÊ VAI MORRER SEM SE APOSENTAR” escrito na tela, em caixa alta. Em seguida, entra a inconfundível voz do Capitão Nascimento repetindo famosas mentiras sobre expectativa de vida e idade de aposentadoria. Termina com “FIM DO DIREITO À APOSENTADORIA” escrito na tela, novamente em caixa alta, com Wagner Moura afirmando que isso ocorrerá com “a maioria da população”.

Para quem já abriu o orçamento federal, só existem duas diferenças entre isso e a famosa mamadeira de “pipoca” que circulou durante as eleições: esse tipo de fake news é muito mais danoso e tem defensores no Projac.

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Infelizmente, Wagner não está sozinho. Ele faz parte de uma tradição repleta de brasileiros geniais nas artes e antas na política. Os próprios membros reconhecem seus pares. Sobre uma das últimas entrevistas de Wagner Moura, Caetano Veloso publicou nas redes sociais: “Amo o jeito de @gilbertogil@russopassapusso, Meu, @danielamercury, mas Wagner falando é a forma que minha inteligência naturalmente sempre buscou”. E completou: “não é concordância com as ideias, é irmandade de processo mental”.

O “processo mental” de Gilberto Gil permite solos vocais acompanhados por um violão que parece trinta. O de Wagner Moura permite a perfeita representação de um capitão do BOPE em crise de pânico. Mas nada nessa genialidade artística os impede de tratar o Amigo da Odebrecht como novo Martin Luther King.

Na própria Bahia, há o caso de Jorge Amado, que chamou de “O Mundo da Paz” seu livro de crônicas sobre a União Soviética de Stalin. Nele, descreve um dos maiores genocidas da história humana como “mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu”. Graciliano Ramos fez coisa parecida. Deu sorte de viver menos, ou poderia passar outras vergonhas já idoso. Jorge Amado ainda viveu o suficiente para escrever o seguinte numa propaganda eleitoral do velho coronel Antônio Carlos Magalhães: “Mestre antológico na voz do povo, a transformar a cidade, a colocá-la no seu tempo, a prepará-la para o futuro. Uma obra que só um cego ou um cretino tentaria negar ou silenciar. (…) Você fez de sua administração um ato de amor, mestre Antônio.”.

Chico Buarque nunca assinou uma nota em defesa de reformas econômicas ou políticas públicas baseadas em evidências. Manifesto de intelectuais e artistas em defesa de Hugo Chávez, por outro lado, ele já assinou.

Ciente das críticas à ideologização da classe artística, Wagner Moura tocou no assunto nas suas últimas entrevistas. Ele atribui as críticas ao fato de artistas serem progressistas, representarem a “mudança” e a “reflexão”.

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Imagino até que vou ser criticado por quem vai, assim como Wagner, ler este texto como uma rejeição à esquerda. Mas não é: trato de artistas geniais que são bestas políticas. A classe artística tendeu à esquerda nas últimas décadas. Isso se reflete na maioria dos exemplos, mas não em todos. Nelson Rodrigues era um notório defensor da ditadura militar. Jorge Luís Borges disse, na presença de Augusto Pinochet, “agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva dinamite”.

Os artistas não são criticados por propor reflexões e mudanças, como sugere Wagner, mas justamente pela adesão cega a narrativas e cretinos em aventuras políticas. O problema é propor reflexões rasas e mudanças ruins.

Mas há uma frase de Wagner, da mesma entrevista, que assino embaixo: “Triste do país que faz dos seus artistas inimigos do povo”. Caetano Veloso, Wagner Moura, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Chico Buarque e Gilberto Gil não são inimigos do povo.

Pelo contrário, a trajetória e talento deles representa o melhor que nosso povo produziu. São, todos, pesos-pesados que merecem respeito por ter elevado a alma nacional.

Se causam mal à sociedade falando besteira, algo deve ser feito. Como na famosa frase atribuída a Dom Pedro II, “imprensa se combate com imprensa”. Palavra se combate com palavra. Livro se combate com livro. Flávio Gordon, colega de Gazeta e autor de um best-seller sobre o assunto, sabe bem disso.

Se grandes músicos e atores fizeram mal ao país vendendo a narrativa do golpe, faça um documentário sobre o assunto. Coloque lá uma cena com a pelada entre Lula, Chico e Mano Brown.

Wagner Moura gosta de falar na bobagem na imprensa? Que aqueles com espaço na imprensa escrevam textos criticando-o. Caso não ocorra, que os leitores façam pressão nos veículos, em nome da verdade. Ou criem novos sites para espalhar a verdade.

Desfrutem de sua liberdade de combater os maus frutos da liberdade alheia, como tento fazer aqui. Opiniões ruins sempre existiram. Recente é a liberdade para criticá-las. Triste do país onde, como no nosso, um Wagner Moura usa seu talento para defender ideias erradas. Mais triste ainda seria o país onde Wagner Moura não tem liberdade para errar – afinal, trata-se da mesma liberdade que ele usou para acertar noutros momentos.

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