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Na ilustração da Revista Illustrada, de 1888, José de Seixas Magalhães entrega camélias para a princesa Isabel
Na ilustração da Revista Illustrada, de 1888, José de Seixas Magalhães entrega camélias para a princesa Isabel| Foto: Reprodução/Revista Illustrada

O português José Seixas de Magalhães estava à frente de seu tempo até mesmo nos negócios. No fim do século 19, ele era um empresário do ramo de malas, produzidas com máquinas a vapor bastante modernas para o Brasil da época, com excelência que lhe rendeu prêmios até mesmo na Europa. Mas não foi por isto que José Seixas de Magalhães entrou na história do Brasil. Além dos negócios, ele mantinha o quilombo do Leblon, um dos grandes símbolos do abolicionismo brasileiro.

Os primeiros quilombos foram formados como esconderijos para aqueles que fugiam da escravidão, como uma forma de transgressão e resistência. Conforme o movimento abolicionista avançava entre a elite brasileira, esse modelo mudou. Na parte final do século 19, diversos quilombos tinham sua existência amplamente reconhecida e estavam nas grandes cidades brasileiras. Abolicionistas que gozavam de status social protegiam esses quilombos da polícia. Alguns exemplos famosos são os quilombos do Jabaquara, em São Paulo, e o do Leblon, no Rio de Janeiro.

O quilombo do Leblon ocupava uma propriedade de José Seixas de Magalhães, no bairro que leva esse nome até hoje. Lá, negros livres produziam camélias, uma flor que rapidamente se transformou em símbolo do movimento abolicionista. Para fabricar uma camélias, era preciso conhecimento técnico e métodos modernos de produção, características escassas no Brasil escravista. Não por acaso, Olavo Bilac, poeta abolicionista e conservador, chamava as camélias de “filhas da civilização”.

As camélias do quilombo ornamentavam a casa da Princesa Isabel, amiga pessoal de José Seixas de Magalhães e protetora do quilombo. Sua capela pessoal, local de oração da então princesa do Brasil, era repleta de flores vindas do Leblon. Foi esse o contexto social que, num 13 de maio ocorrido 132 anos atrás, levou à abolição da escravatura.

A história do movimento abolicionista foi longa. O avô de Isabel, Dom Pedro I, rompeu com José Bonifácio de Andrada e Silva justamente por causa das opiniões dele sobre a abolição. O patriarca da independência foi, também, um pioneiro ao pensar nas potencialidades do Brasil. Por isso, propunha que o fim da escravidão fosse combinado a uma reforma agrária e educacional, que abrisse universidades e escolas e expandisse as oportunidades disponíveis aos pobres brasileiros.

Ao longo das décadas, permaneceu no movimento abolicionista a ideia de que, além de findar o escravismo, era preciso combater o legado da escravidão. O objetivo final dos abolicionistas era a construção de um novo país, onde a libertação dos negros não seria uma formalidade trabalhista. Como se sabe, este passo seguinte nunca foi dado. Mesmo após a abolição, os pobres brasileiros – majoritariamente negros – não tiveram acesso à educação básica ou quaisquer políticas públicas de compensação.

É triste notar que, 132 anos depois, a ideia de uma abolição incompleta tem sido associada exclusivamente à esquerda. Nem sempre foi assim. Muitos conservadores e principalmente liberais integraram o movimento abolicionista. Joaquim Nabuco, patrono do liberalismo brasileiro, já previa que a escravidão seria a característica fundamental do Brasil por muitas décadas, o que de fato ocorreu.

Apesar de merecer a devida comemoração, a abolição que hoje aniversaria foi incompleta. E mais: como Nabuco também sabia, o Brasil só vai realizar as suas potencialidades quando o legado da escravidão também for abolido.

Este precisa ser um projeto de todo o espectro ideológico nacional. Socialistas, liberais e conservadores podem ter agendas distintas sobre como finalizar o projeto abolicionista, mas este deve ser um dos primeiros pontos na lista de prioridades de todos os grupos políticos.

O acesso universal a uma educação de qualidade, sem dúvida, é uma ideia que pode ser abraçada por todos, assim como a implementação de um sistema tributário progressivo – um objetivo que não precisa envolver elevação de impostos.

Acima de tudo, o Brasil precisa reconhecer que a atual distribuição desigual da renda não foi construída de modo natural. Processos sociais, principalmente a escravização de negros, nos trouxeram à situação atual. Portanto, só políticas públicas resolverão o problema. Inúmeros trabalhos acadêmicos de economistas mostram a correlação entre o número de escravos que cada região possuía no passado e a desigualdade que persiste no tempo presente.

Numa música sobre as camélias do Leblon, Caetano Veloso termina em tom de esperança: “as camélias da segunda abolição virão”. No título da coluna, incluo a interrogação, pois esta superação não parece estar na agenda prioritária de nenhum grupo político. O grande desafio nacional tem sido escanteado em nome da política baixa do dia-a-dia. Em tempos de pandemia, a situação se agrava e é cada vez mais raro encontrar quem esteja disposto a pensar em projetos de longo prazo. Mas o país continua existindo e continua sofrendo com a incompletude da abolição que hoje completa 132 anos.

Espero que, em meio a toda esta confusão, algum tempo para conversarmos sobre o que realmente importa. Bolsonaro, Maia, Doria e Lula passam, assim como a Princesa Isabel e José Seixas de Magalhães passaram. A escravidão, por outro lado, será persistente enquanto não lidarmos com ela. Seu legado segue como característica central do país, conforme previsto por Nabuco. Esta herança aparece até mesmo no modo como o novo Coronavírus afeta diversos setores da população. O Brasil só se transformará em país do futuro quando for capaz de lidar com o seu passado.

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