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“Não posso tirar de pobres para dar a paupérrimos”, disse Bolsonaro sobre a proposta de acabar com o abono salarial. Mas só 16% dos beneficiários são realmente pobres.
“Não posso tirar de pobres para dar a paupérrimos”, disse Bolsonaro sobre a proposta de acabar com o abono salarial. Mas só 16% dos beneficiários são realmente pobres.| Foto: Sergio Lima/AFP

“Não posso tirar de pobres para dar a paupérrimos”, disse Jair Bolsonaro ao anunciar a suspensão dos planos de expandir o Bolsa Família. A ideia de Paulo Guedes é acabar com o abono salarial e transferir os recursos para a criação de um novo programa, o Renda Brasil. A frase de Bolsonaro sugere dois erros gritantes do presidente.

Primeiramente, tirar de um grupo para dar a outro faz parte da essência da política – ainda mais no país do teto de gastos, que foi implementado justamente para explicitar a necessidade de escolhas do tipo. Se um programa supostamente vai para os pobres, mas é ineficiente, não há problema algum em cortá-lo para redirecionar o orçamento para outro programa mais eficiente – e é o caso do Bolsa Família. O desejo de agradar a todos não combina com a missão para a qual Bolsonaro foi eleito.

Ainda mais grave, no caso, é a caracterização do abono como um programa destinado a beneficiar “pobres”. Uma pesquisa recente do Ipea, baseada em dados do IBGE, divide a população brasileira em três partes — o terço mais pobre, o terço do meio e o terço mais rico — para avaliar quem recebe o abono salarial. Em 2018, apenas 16% dos beneficiários do abono salarial estavam no terço mais pobre da população. No terço do meio estavam 45% dos beneficiários, enquanto o terço mais rico da população brasileira concentrava 39% dos que recebem o abono.

Dados estes números, é provável que a metade mais rica da população receba a maioria dos recursos do abono. Os “pobres” que Bolsonaro tenta preservar são mais ricos do que ele pensa.

Outro problema do abono é a sua indexação em relação ao salário mínimo. Poucos comentam, mas o descalabro fiscal brasileiro tem grande relação com o crescimento acelerado do salário mínimo nos governos tucanos e petistas. Como grande parte dos gastos públicos (piso do INSS, BPC, abono salarial, dentre outros) estão vinculados ao salário mínimo, e este cresceu muito mais do que o PIB nos últimos 30 anos, o resultado inevitável apareceu sob a forma de gastos que cresciam mais que o PIB. Este crescimento desenfreado e não-planejado dos gastos públicos terminou asfixiando as políticas sociais brasileiras, com prejuízos mais sensíveis para a população pobre.

O momento exige mudança de rota. Os leitores mais assíduos da coluna sabem que, apesar de defender uma visão econômica liberal, tenho apreço por políticas que busquem fechar o abismo social brasileiro. O governo precisa acabar com essa história de política social que beneficia as parcelas mais ricas da população, e também com a indexação do orçamento ao salário mínimo. Paulo Guedes propôs uma boa ideia para avançar nessa direção, mas foi humilhado em público pelo presidente.

Bolsonaro já dispõe dos instrumentos necessários para tirar dos ricos e dar aos paupérrimos, mas ignorou a maioria deles até o momento. A reforma tributária pode cumprir bem esse papel, seja pela tributação de dividendos, criação de uma nova alíquota do Imposto de Renda para famílias de alta renda ou pelo fim de deduções tributárias. Pelo lado dos gastos, também há a via da reforma administrativa, o corte de benefícios creditícios e outros que poderiam financiar o novo programa desejado por Guedes.

Na minha opinião, o presidente deveria apostar em todas as fontes de financiamento que forem politicamente viáveis. Inclusive o abono salarial. Ao caracterizar o fim do abono como “tirar do pobre”, o presidente sabota uma excelente ideia que poderia dar sobrevida ao apoio político recebido por ele após a boa recepção do auxílio emergencial.

Ainda mais grave é a mensagem enviada. Bolsonaro, mais uma vez, se revela como um presidente que tem medo de contrariar interesses realmente poderosos. Uma coisa é xingar quilombolas; outra, bem mais difícil, é se colocar contra o estamento burocrático brasileiro ou reformar benefícios sociais mal focalizados. O presidente pode até ser a Thatcher politicamente incorreta, aquela que passava pano pro apartheid, mas mostra que é bem diferente da destemida Thatcher que aguentava greves gerais sem abalar o próprio ímpeto reformista na economia.

Medroso, Bolsonaro rejeita a boa ousadia de seu ministro. Mais uma vez, o presidente demonstra que é pequeno demais para enfrentar a grandeza dos desafios brasileiros. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, um dos destaques positivos do governo até o momento, costuma dizer que não quer integrar mais uma geração perdida. Infelizmente, seu chefe não perde a oportunidade de perder uma oportunidade.

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