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Como a desinformação sobre a Covid circula nas redes sociais
| Foto: Unsplash

É difícil passar alguns dias sem ler ou ouvir sobre problemas trazidos pelas redes sociais. Inclusive porque este é um assunto frequente nas próprias redes. Até por isso, abro o texto com uma solução: nunca antes, na história da humanidade, tivemos tantas informações sobre o debate público. Graças às redes sociais, temos uma vasta, variada e desagregada amostra de opiniões publicadas, permitindo que pesquisadores analisem o debate público com nuance e profundidade inimagináveis no passado.

Pouco a pouco, novos métodos e dados ganham espaço no Brasil. Um dos grupos responsáveis por este avanço é o MIDIARS, laboratório de pesquisa ligado a duas universidades federais gaúchas (UFRGS e UFPEL). Recentemente, o MIDIARS publicou o relatório “Desinformação, Mídias Sociais e Covid-19 no Brasil”. Você pode ler o estudo na íntegra ao clicar aqui.

Para chegar aos resultados a seguir, foram analisados milhões de posts/tuítes/etc nas principais redes sociais. As publicações analisadas datam de 2020, a partir de março.

Como coordenar esforços num país polarizado?

Como o próprio nome sugere, o relatório foca na circulação de desinformação, mas algumas análises nos ajudam também a entender outros aspectos dos debates sobre pandemia nas redes sociais.

Um dos resultados mais interessantes aparece logo na abertura: a polarização do debate. Discordo do modo como o relatório descreve o problema, que seria tratar a pandemia “como assunto político-partidário e não um problema de saúde pública”. Afinal, saúde pública é necessariamente um assunto político-partidário. Porém, todo diálogo, especialmente quando a política partidária está no plano de fundo, deve partir de um conjunto de fatos reconhecidos como verdadeiros por todos.

Esta divergência na forma é pequena frente à relevância do resultado apresentado nos relatórios: a pandemia foi debatida por bolhas que consomem as mesmas informações e integram as mesmas tribos ideológicas, o que dificulta tanto o diálogo quanto a coordenação de esforços. Existem várias estratégias possíveis para combater a Covid-19, mas todas exigem uma ação coletiva na mesma direção. Por exemplo: se Maria usa máscara e João não usa, tanto Maria quanto João se prejudicam.

Seria interessante ler um estudo comparando a polarização das redes sociais nos debates sobre pandemia com o desempenho de cada país no combate à Covid-19. Afinal, se a medidas sanitárias dependem fundamentalmente da coordenação, países politicamente polarizados tendem a registrar mais mortes.

O papel das bolhas na circulação de desinformação

Evidentemente, desinformação é um conceito subjetivo. Algumas informações são indiscutivelmente verdadeiras ou falsas, mas muitas ocupam uma zona cinza. Portanto, é importante ressaltar que o MIDIARS divulga os seus critérios, metodologia e até algumas bases de dados, como deve ocorrer em qualquer pesquisa.

Um interessante resultado mostra que, nas bolhas onde a desinformação circula mais, as checagens circulam menos. Quando uma bolha compartilha certa informação falsa, raramente a correção circula na mesma bolha. O pior é que, mesmo nesses raros momentos em que desinformação e checagem circulam juntas numa bolha, geralmente a checagem vem distorcida.

Outro resultado interessante mostra que os usuários que mais compartilham desinformação são também os mais ativos e engajados. Imagino que se trate de um perfil bem conhecido por quem frequenta as redes: pessoas integradas a uma bolha de radicais, sempre ansiosas para publicar algo que agrade à sua tribo.

Ainda mais grave, a probabilidade de um conteúdo desinformativo ser repassado no Twitter é quase 3x maior em comparação com a circulação de conteúdos que checam a informação. No Facebook, a probabilidade é 1,5x maior. Cabe ressaltar que as duas redes funcionam com lógicas próprias e a diferença não expressa necessariamente um esforço maior do Facebook.

Pensar com a própria cabeça, e não de acordo com uma tribo ou autoridade, é importante

O estudo observa ainda que autoridades políticas e especialistas em saúde tem 1,5 vez mais chances de serem retuitados quando compartilham desinformação. Esse resultado traz lições para os usuários das redes, que não podem suspender a cautela apenas porque o autor da publicação é médico ou ocupa um grande cargo. Ainda mais importantes são as lições para as próprias autoridades científicas e políticas. Uma mudança de postura desses profissionais faria bem às redes.

Medidas de responsabilização são válidas, e até recomendadas no estudo, mas precisam ser muito bem desenhadas para evitar restrições à liberdade de expressão. Senti falta de outra sugestão: mecanismos que permitam ao usuário verificar o histórico e reputação de certo político ou especialista. Desinformadores seriais precisam ser identificados pelo público com facilidade.

Porém, a grande maioria do volume de desinformação está relacionada a influenciadores políticos. É natural, dado que muitos deles passam o dia nas redes em busca de engajamento. Nada melhor para engajar radicais do que moldar um fato conforme as preferências deles.

Novamente, é um resultado que reforça a importância do ceticismo para o usuário. Se você concorda recorrentemente com um certo influenciador, isso não significa que ele merece credibilidade. Há gente séria e desinformadores em todas as tribos e ideologias. Quem relaxa o senso crítico ao se deparar com companheiros está mais propenso a desinformar.

O papel da imprensa

A maior parte da desinformação circula através de sites apócrifos e hiperpartidários, o que não é exatamente uma surpresa. Porém, isto não implica que a grande imprensa não tem sua dose de responsabilidade.

Aqui, acho irresistível lembrar de um exemplo. Em março do ano passado, um americano morreu intoxicado por cloroquina ao se medicar contra o coronavírus. A maior parte da imprensa publicou sobre o caso, que viralizou. As manchetes, porém, não informavam que a cloroquina usada era uma substância para limpeza de aquários, em vez do polêmico remédio para humanos. Mesmo após grupos pró-cloroquina compartilharem para descredibilizar a imprensa, poucos veículos mudaram a manchete.

Caso a imprensa queira atuar como reguladora extraoficial através de checagens, é importante que a própria imprensa mude, evitando caça-cliques. O estudo aborda também outro ponto, que considero muito válido: o papel do jornalismo declaratório. Uma frase dita por um político ou alguém famoso pode incentivar a desinformação, especialmente quando a declaração é compartilhada como fato.

Eu adicionaria ainda que, nos casos em que o leitor discorda da declaração transformada em notícia, aquilo servirá como desculpa para novamente descredibilizar a imprensa, o que acaba afetando a circulação das checagens.

De todo modo, por mais que a grande imprensa seja genericamente menos propensa a desinformação do que a grande maioria dos sites focados em um nicho, o jornalismo profissional é parte do problema – e, principalmente, pode ser parte da solução.

A desinformação não é um problema novo, mas certamente tem uma dimensão e circulação que são típicas do nosso tempo. Uma diferença entre a desinformação atual e a do passado é justamente a nossa capacidade de analisar dados para entender o que está acontecendo. Graças ao trabalho de grupos como MIDIARS, o debate sobre a desinformação pode ficar muito mais produtivo e construtivo. Não é pouca coisa.

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