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Democracia em Vertigem: a diretora Petra Costa
Democracia em Vertigem: a documentarista Petra Costa acompanhou o processo de impeachment de Dilma.| Foto: Divulgação

Enquanto todo mundo pedia para que o PT fizesse autocrítica, o partido fazia documentário. O nome é Democracia em Vertigem (ou The Edge of Democracy), em parceria com a Netflix. Por que uma grande marca do capitalismo americano se uniria ao petismo? Pergunta interessante. Vale outra coluna, que não escrevo por falta de convicções sobre o assunto. Mas esse detalhe intrigante não descaracteriza o petismo do documentário, nítido do início ao fim.

“Democracia em Vertigem” narra o impeachment e a prisão de Lula com a mesma posição dos documentos oficiais do PT. As críticas ao petismo são as já frequentes no discurso de qualquer Fernando Haddad. O maior trunfo da obra são as imagens de grão-petistas nos períodos mais nervosos da crise política. A diretora Petra Costa teve acesso exclusivo a Dilma e Lula no olho do furacão, privilégio que certamente não seria concedido a um infiel. Mais do que esquerdista, o filme é petista – são coisas bem diferentes, como argumentarei daqui a algumas linhas.

Há talento no documentário. Petra mostra um olhar sensível ao comentar cenas como a de Dilma, Marisa e Lula descendo a rampa após a entrega da faixa presidencial em 1º de janeiro de 2011, na qual o trio petista desfila fisicamente distante do então vice-presidente Temer. Há talento também nas filmagens, de muito bom gosto estético. Mas boa filmagem, sozinha, não sustenta um bom documentário. É preciso algum compromisso com a realidade.

“Democracia em Vertigem" é inútil enquanto fonte de informação. Se um alemão desinformado assistir ao documentário, terminará sem saber se os protestos contra Dilma foram maiores do que os contra Temer – nenhum número é divulgado.

O alemão seguiria ignorante sobre a dimensão da crise econômica brasileira. Esta é comentada em duas frases aos 30 minutos de documentário. Pouco aparece depois. Incorretamente, Petra relata a crise como iniciada em 2015. Na realidade, a recessão começou em 2014 e a desaceleração do crescimento vem desde 2010. Tal desaceleração foi uma das causas de junho de 2013, assim como a alta da inflação naqueles tempos, mas o espectador termina o filme sem saber disso.

Petra também acha que o alemão desinformado não precisa saber das pesquisas de opinião pública sobre impeachment e prisão de Lula. Também nega a ele qualquer explicação sobre o que são pedaladas fiscais. Todas as defesas do impeachment apresentadas no documentário são ridículas e tratam de outros assuntos. No fim das contas, o filme ignora a presença de crimes orçamentários na lei do impeachment, assim como o julgamento do TCU sobre as contas de Dilma.

Em seu discurso de posse, quando Temer diz que o início do seu governo seria um ato religioso, Petra edita maldosamente a fala. Fica parecendo que o ex-presidente atentava contra o estado laico. A edição esconde a maior parte dos trechos sobre a etimologia da palavra – que remete a “religar”. Temer usou o termo para afirmar que seu governo gostaria de unir os brasileiros após a polarização do impeachment. A palavra “religião”, naquele discurso de posse, tinha um significado quase secular, mas é retratado por Petra em tons teocráticos.

O alemão desinformado não saberia dizer a dimensão do petrolão e dos esquemas de caixa dois para as eleições presidenciais do PT. Para Petra Costa, tudo isso é secundário. Só lhe serve o que agrada ao partido.

Que fique claro: não há crime em ser petista. Gosto de ler petistas como Celso Rocha de Barros. Celso é um sociólogo que tem partido, assim como Laura Carvalho é uma economista que tem partido, enquanto Petra é uma cineasta a serviço do partido. É importante ressaltar a diferença. Celso e Laura são capazes de desagradar o PT em nome da boa reflexão. Petra, não.

Outra diferença é que Celso e Laura acompanham a política brasileira de perto, com informações e pontos de vista valiosos. Já Petra diz que o impeachment foi “a primeira vez em mais de 20 anos que o pais prestava atenção no que acontecia no Congresso”. Em seguida, admite que “não sabia quase nada” sobre os parlamentares até então. Poucas cenas depois, confessa que só foi descobrir do que Dilma era acusada durante as filmagens do documentário.

A ignorância chega ao cúmulo quando Petra aborda os processos contra Lula. Primeiro, diz que o Amigo da Odebrecht foi acusado de chefiar o Petrolão apenas por ser próximo de outros envolvidos e ter o poder de tomar decisões. Essa descrição varia entre o eufemismo e a desonestidade. Em seguida, emenda: “a acusação de fato, após dois anos de investigação, era de que Lula havia recebido um triplex de uma empreiteira”. Não é verdade, Petra. Esta é uma dentre várias denúncias. Os processos contra Lula se baseiam até em provas acidentalmente produzidas por ele mesmo – é o caso, por exemplo, dos pedidos para que seguranças da Polícia Federal acompanhassem o ex-presidente no sítio de Atibaia durante mais de 20% dos seus dias entre 2012 e o início de 2015.

O ápice da ignorância de Petra aparece em resposta a um promotor do Ministério Público contra Lula. Transcrevo as falas abaixo. Na íntegra, pois editar o contraditório para que ele pareça ridículo é atitude de documentarista picareta.

Na cena de Democracia em Vertigem, o procurador diz: “Não temos provas cabais de que Lula é efetivo proprietário, no papel, do apartamento, pois justamente o fato dele não figurar como proprietário do triplex da cobertura em Guarujá é uma forma de ocultação e simulação da verdadeira propriedade”.

Mesmo com esse português enrolado - se existiam falas mais claras de outros procuradores, por que Petra escolheu logo essa? -, o conteúdo do que ele diz é cristalino: o registro do imóvel no nome de Lula é irrelevante porque ele estava sendo julgado por ocultação de patrimônio. Se o crime é esconder a verdadeira propriedade do apartamento, a ausência do nome na escritura do tríplex não prova a inocência do acusado.

Assim responde Petra, na sequência: “O fato de que não existem provas de que ele é o dono do apartamento é considerado prova da sua tentativa de escondê-lo; e essa prova então é usada como evidência de que ele é o chefe do esquema”.

É tão absurdo que chega a ser difícil comentar. Além de não entender a fala do procurador, Petra inventou que o tríplex justificava a descrição de Lula como chefe do Petrolão.

Cena seguinte: velório de Marisa, cuja morte é atribuída à Lava Jato.

Democracia em Vertigem: crítica ao filme

A ignorância confessa de Petra sobre a política brasileira, assim como seu petismo, poderiam ser resolvidos mantendo o viés de esquerda do documentário Democracia em Vertigem: como crítica, para isso, o talento cinematográfico precisaria conversar com alguns acadêmicos, intelectuais, gente disposta à contestação. A diretora os dispensou. Três pessoas narram quase todos os acontecimentos: Petra (em off), Lula e Dilma (nas imagens exclusivas que concederam, sem ingenuidade, à companheira).

Como resultado, o documentário encaixa-se perfeitamente no que George Orwell chamou de “linguagem política” no seu clássico ensaio Política e a Língua Inglesa.  Nem todo documentário sobre política precisa de linguagem política, nesta acepção orwelliana do termo. Talvez o significado seja mais facilmente apreensível como linguagem partidária ou politiqueira. Isto fica claro no seguinte trecho do referido ensaio, traduzido por Desiderio Murcho:

“No nosso tempo, o discurso e a escrita política são em grande medida a defesa do indefensável. Coisas como a continuidade do domínio britânico na Índia, as purgas e deportações russas, o bombardeamento atômico do Japão, podem realmente ser defendidas, mas apenas com argumentos que são demasiado brutais para que a maior parte das pessoas os assuma, e que não combina bem com os objetivos professados dos partidos políticos. Assim, a linguagem política tem de consistir em grande medida em eufemismo, petição de princípio e pura vagueza turva.”

Eufemismo e vagueza são as linhas mestras do filme Democracia em Vertigem, seja através da já comentada omissão de fatos fundamentais ou pela apresentação cuidadosamente bondosa dos crimes petistas.

O documentário consiste essencialmente numa narrativa pessoal, baseada na história familiar de Petra Costa. Seus pais foram torturados durante a ditadura militar. Petra não informa muito sobre a atuação política e filiação ideológica deles, mas cita Pedro Pomar, histórico dirigente do PCdoB, como um importante mentor. Foi Pedro quem inspirou o nome de Petra. Enquanto a diretora conta essa história, o filme mostra o slogan “quero votar para presidente”, das Diretas Já.

Pedro Pomar, em 1968, descreveu a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung como:

"contundente derrota para a coalizão mundial contrarrevolucionária do imperialismo, da reação e do revisionismo contemporâneo". E completa: "Ao mobilizar massas de centenas de milhões, num movimento de envergadura sem precedente, a Revolução Cultural Proletária, em menos de dois anos, já estendeu-se a toda a China e desbaratou a trama revisionista burguesa, que visava a restauração do capitalismo".

É claro que Pedro Pomar queria votar para presidente: como alto dirigente do PCdoB, ele talvez tivesse um assento no Comitê Central caso sua revolução triunfasse. Eis a única conexão possível entre voto pra presidente e os ideais que inspiraram os pais de Petra.

Seria desumano relativizar a tortura, assim como é desonesto retratar o PCdoB daqueles tempos como democrata. Não era. Petra a ideologia dos seus pais assim porque a verdade é dura demais para ser assumida, como preconizava Orwell. Além da imprecisão calculada, o trecho revela já no início a presença de uma esquerda sem disposição para a autocrítica.

Pouco adiante, na apresentação de Lula, Petra afirma que o ex-presidente se interessou por política após entrar no Congresso e notar que 2 dos 443 deputados vinha da classe trabalhadora. Ela diz da própria boca, sem citar fonte ou duvidar da afirmação. O relato provavelmente veio de Lula, em mais um dos tradicionais auto-elogios do homem que já se comparou com Jesus Cristo. Petra aceita tudo pelo valor de face, porque atua a serviço de um partido.

Pelo mesmo motivo, ela abusa também da má dialética: com frequência contrapõe dois lados com o objetivo de ridicularizar um deles. Diz, por exemplo, que “de um lado, eu só ouvia que Dilma era responsável por todos os problemas do país; do outro, que a acusação contra ela não justificava um impeachment”.

Não conheço um defensor do anti-petista que conscientemente acuse Dilma de todos os problemas do país. Todos os petistas que eu conheço concordam que o impeachment foi mal justificado. Esse é um padrão na narrativa de Petra, que desumaniza o contraditório e não o leva a sério, mas trata a narrativa petista com todo carinho possível.

A dialética desonesta aparece em diversos momentos. “De um lado, a história da elite da qual meus avós faziam parte; do outro, a história dos meus pais e da esquerda que eles sonharam, que está desmoronando”, nos conta a documentarista. Como se a esquerda não pudesse fazer parte da elite. Petra, que anda rodeada de ex-presidentes e descende de um fundador da Andrade Gutierrez, certamente não é operária.

A diretora gosta tanto desta prática que a repete até através de imagens. Após mostrar pedidos de intervenção militar, Petra emenda: “o país se dividiu em duas partes, esse é o outro lado”. Em seguida, aparece o tal do outro lado defendendo justiça social e belos valores. São uns puros.

Na contraposição mais ridícula, uma mulher branca e aparentemente rica aparece reclamando do que chama de “cotas racistas”, enquanto gente aparentemente pobre agradece a Lula pela sua generosidade. Como esperado, a redução da pobreza e desigualdade no governo Lula é atribuída à bondade do petismo.

Naturalmente, Petra ignora que quase todos os países sul-americanos passaram por reduções na pobreza e desigualdade no mesmo período – e na maioria deles, essa redução foi maior que a brasileira. Ignora também que a política econômica do PT teve bons resultados quando não era petista, depois piorou conforme quadros do partido ganharam espaço na equipe econômica.

Confesso que, antes de assistir Democracia em Vertigem, já esperava um documentário com visões à esquerda, mas não com visões tão petistas. Há diferença fundamental entre uma coisa e outra. Uma visão à esquerda pode ter o propósito sincero de esclarecer o mundo. Uma visão petista tem o objetivo único de concentrar poder em torno do PT, através de narrativas agradáveis ao partido. Foi a isso que Petra se submeteu - e é com essa premissa que seu documentário deve ser assistido.

Um filme para sobrinhos do zap

Não acredito que Petra seja mentirosa, pura e simplesmente. O tom e a história familiar da diretora corroboram a imagem de uma crença política sincera na inocência de Lula. Por isso, apesar do documentário não ser boa fonte de informações sobre o Brasil, a obra é útil para entender a mentalidade de parte da elite brasileira.

A visão pessoal de Petra sobre nossa política serve como base para o roteiro, mas não é só dela. Muita gente pensa assim. Por isso, mesmo não sendo bom para entender o Brasil, o filme é ótimo enquanto retrato de certa elite culpada que não se reconhece como tal.

Mais do que isso, Petra não esconde o desprezo por aqueles que pensam diferente. Estes seriam autoritários e ignorantes, uns brucutus que não merecem nuance. Cerca de 60% da população brasileira é favorável à prisão de Lula e impeachment de Dilma. Será que essa maioria se resume a defensores da ditadura militar e racistas, como os que aparecem no filme de Petra?

Não há, ali, um esforço sincero para entender a maioria dos brasileiros. Há a ridicularização destes por alguém que é incapaz de retratar o divergente como humano. Eis um forte sinal de radicalismo político que aproxima Petra de Pedro, o dirigente do PCdoB que inspirava os pais dela em meio a elogios ao genocídio de Mao Tsé-Tung.

No fim das contas, o que o documentário Democracia em Vertigem revela é a tribo dos sobrinhos do zap. Estes guardam semelhanças com os tiozões do zap, seu par mais velho e direitista. O sobrinho do zap também é incapaz de ver valor em quem discorda dele. Como o tiozão, ele aceita acriticamente o discurso do seu populista de estimação.

Sobrinhos do zap, como Petra, tem todas as características dos tiozões do zap. As diferenças são principalmente geracionais. Além da idade, os sobrinhos se destacam por uma linguagem interessada em arrotar virtude. Sobrinhos são superficiais e péssimas fontes de informação, como os tiozões. Odeiam o pensamento crítico, apesar de usarem a expressão a todo tempo. Eles não sabem a diferença entre juízo de fato e de valor. Em geral, encaram a política como um combustível para a própria vaidade, sem se importar com as pessoas reais que são afetadas no caminho.

Tiozões e sobrinhos são danosos ao debate público, mas se proliferam no contexto da internet. Ambos se odeiam. O tiozão acha que o sobrinho é um esquerdista autoritário. O sobrinho acha que o tiozão é um fascista autoritário. Com frequência, ambos estão certos.

Uma curiosidade é que o tiozão do zap costuma odiar o sobrinho do zap – e vice-versa. Petra, ao retratar diversos tiozões em seu filme, mostra que compartilha desse ódio. Ironicamente, ela não repara suas semelhanças com os velhinhos que odeia. O resultado não poderia ser outro: um filme que ironiza as fotos dos ditadores militares no antigo gabinete parlamentar de Jair Bolsonaro, mas o faz através dos depoimentos de quem idolatra Chávez, Mao ou Vargas.

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