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Caetano Veloso: o liberalismo é maior do que os liberais
Caetano Veloso: o liberalismo é maior do que os liberais| Foto: Reprodução/Facebook

Caetano nunca foi visto no debate público brasileiro como um liberal, por motivos compreensíveis: sempre se alinhou à esquerda, num país que praticamente desconhece a rica tradição dos liberais de esquerda. Poucos reparam que, nas letras dele, Estados Unidos e Inglaterra aparecem como grandes referenciais civilizatórios para o Brasil – em contraste com Chico Buarque, cujo apreço por Cuba é bem conhecido. Ou não era: em entrevista a Pedro Bial, o famoso compositor baiano anunciou seu rompimento com o liberalismo e uma inflexão na direção do socialismo.

Já existiam sintomas no ar. Quando Danilo Gentili corria risco de prisão por passar uma carta do Congresso nas suas “partes íntimas”, Caetano e sua esposa Paula Lavigne comemoraram nas redes sociais. Poucas décadas transformaram o autor de “É Proibido Proibir” num defensor da prisão de quem esfrega papel na própria genital. O tempo, que não faz bem a todos, aproximou Caetano dos seus carrascos militares.

Dado o histórico de outros gênios baianos, até que poderia ser pior. Não satisfeito em receber o prêmio Stalin da Paz (sim, isso existia), Jorge Amado chegou a publicar um livro em homenagem à URSS stalinista – título: “O Mundo da Paz”. Nele, Stalin é descrito como “mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu”. Após abandonar o comunismo, Jorge Amado se aproximou do velho ACM, ex-senador e governador da Bahia, escrevendo cartas endereçadas a “Mestre Antônio” que eram lidas em propagandas eleitorais. A genialidade artística, infelizmente, é uma clássica companheira da estupidez política.

A declaração de Caetano pode ser entendida como um fenômeno pessoal. Nos últimos anos, a esquerda abraçou o cantor, como sempre fez, enquanto grupos liberais comandavam campanhas contra o cantor. O MBL, por exemplo, chamou o músico baiano de pedófilo por conta do seu relacionamento com Paula Lavigne, iniciado quando ela tinha 13 anos. Apesar de haver substância intelectual do argumento de Caetano, é difícil separar suas posições recentes da polêmica familiar.

Segundo o próprio, seu afastamento do liberalismo se deu após a leitura de Domenico Losurdo, um filósofo e historiador italiano. Num de seus livros, “Contra-História do Liberalismo”, Losurdo discorre sobre a proximidade histórica de alguns liberais com o escravismo, racismo, colonialismo e outras ideias repugnantes. De fato, é impossível negar que John Locke defendeu a escravidão, assim como Adam Smith foi um simpatizante do colonialismo. A história do liberalismo é bem menos limpa do que sugerem seus defensores mais ingênuos.

Por outro lado, falta nuance na descrição de Losurdo, um comunista desavergonhado. Primeiramente, Locke e Smith eram homens do seu tempo. Assim como é intelectualmente desonesto julgar o marxismo com base em críticas anacrônicas sobre os preconceitos de Marx, o mesmo vale para quem julga o liberalismo com base em críticas anacrônicas sobre um intelectual do século 17, como John Locke.

Além disso, assim como muitos liberais defenderam a escravidão, o abolicionismo foi um movimento majoritariamente liberal em grande parte do planeta, inclusive no Brasil. Assim como a ala conservadora do Partido Liberal defendia a escravidão, “liberais radicais” como Luís Gama comandaram o movimento abolicionista. Sendo uma tradição intelectual mais diversa do que o comunismo, o liberalismo é mais capaz de abrigar contradições e se renovar a partir de novos paradigmas históricos.

E este é o ponto fundamental: se liberais foram racistas, escravistas e colonialistas, o fato é que a democracia liberal foi uma vigorosa combatente do racismo, do escravismo e colonialismo. O movimento abolicionista não teria a mesma força sem a imprensa livre ou a separação de poderes defendida pelos liberais.

Angela Davis, outra comunista desavergonhada, denuncia o racismo a partir da Universidade da Califórnia. O exemplo de Davis resume a superioridade moral do liberalismo: nos EUA, uma comunista pode debater as falhas do liberalismo numa cátedra de universidade pública. Se Milton Friedman fosse soviético, ele não teria a mesma liberdade.

Como bem escreveu José Guilherme Merquior na abertura de um clássico ensaio, “o cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu: não basta decidir sobre a base social do poder — é igualmente importante determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso”. O liberalismo não é uma doutrina fechada sobre uma concepção específica do que é o progresso. Na verdade, trata-se de um molde institucional dentro do qual o progresso deve ocorrer para garantir que este seja concretizado.

É inegável que, tendo sua origem na burguesia, o liberalismo foi liderado por humanos que reproduziram preconceitos e más ideias típicos da sua classe, do seu tempo e espaço. Mas esta é a grande virtude do liberalismo, ignorada por Caetano e Losurdo: a democracia liberal não depende dos valores de seus líderes, sendo capaz de regenerar-se através de um debate público livre e descentralizado.

Este processo de regeneração contínua não pode acontecer numa ditadura do proletariado. A coletivização dos meios de produção leva, necessariamente, ao enfraquecimento da imprensa livre, que depende da propriedade privada. Limites constitucionais são vistos como um obstáculo na busca da revolução.

É por isto que o liberalismo é maior do que os liberais: as bases de uma ordem livre permitem que as sociedades liberais se movam e superem os defeitos humanos de seus criadores. O socialismo, por outro lado, tem o tamanho dos socialistas. Na ausência de limites constitucionais ao poder, o arbítrio do poderoso tem maior influência. Não faltam obras similares à de Losurdo, mas com sinal trocado: “contra-histórias” do comunismo que descrevem as inúmeras ideias ruins e atrocidades defendidas por líderes revolucionários.

Há, porém, uma diferença simples entre as consequências dos erros tipicamente humanos dos líderes de cada movimento políticos. Nos Estados Unidos, Thomas Jefferson lançou as bases para que as gerações seguintes derrotassem sua mentalidade escravocrata. Harriet Tubman, Martin Luther King Jr e muitos outros foram capazes de exercer a própria liberdade para superar as más ideias dos pais fundadores. O mesmo nunca ocorreu no socialismo da Europa Oriental, onde vícios de origem jamais foram corrigidos e resultaram numa sociedade degenerada, tomada pela corrupção e pelo desprezo às liberdades.

Caetano tem razão quando diz que os liberais também são cheios de defeitos. Assim são os seres humanos. A força do argumento liberal reside justamente na sua capacidade de considerar a imperfeição humana e conter os danos gerados por ela.

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