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O tedioso documentário sobre Caetano Veloso mostra como a estupidez da censura é capaz de transformar bons artistas em gênios e até em mártires.
O tedioso documentário sobre Caetano Veloso mostra como a estupidez da censura é capaz de transformar bons artistas em gênios e até em mártires.| Foto: Reprodução/ Twitter

Ah, o ridículo da juventude. Eu tinha no máximo 18 anos quando fui a um show de Caetano Veloso pela primeira e última vez. Na Pedreira Paulo Leminski, em Curitiba. Acho que era de graça ou muito barato. Provavelmente show oficial, com o cachê pago com meus impostos.

Do show só lembro que estava ao lado de um amigo, os dois cheios daquela razão típica do fim da adolescência. Ouvindo Caetano cantando um de seus clássicos, a certa hora virei para o meu amigo, apontei para o telão e disse: “Imagina quantas coisas aquelas rugas já não viram”. Ah, o ridículo da juventude.

Pouco depois eu teria essa minha admiração abalada pela famosa entrevista de Bruno Tolentino à Veja, na qual o poeta basicamente desdizia tudo o que os meus professores me ensinaram ao longo do segundo grau (“ensino médio” para os novinhos). Não sei que milagre se deu ao ler aquelas letrinhas miúdas sob o fundo amarelo. Só sei que, a partir dali, eu comecei a desconfiar de tudo o que os meus professores diziam que era incontestavelmente bom, ou melhor, genial no mundo da cultura.

De vez em quando, porém, sou tomado por uma vontade louca de ouvir o melhor de Caetano Veloso. Nesses dias, para o desespero dos vizinhos, saio à sacada e, com a voz mais desafinada do mundo, entoo “Força Estranha”, “O Quereres” e a improbabilíssima “Circuladô de Fulô” – logo eu, que tenho alergia a Haroldo de Campos.

O general jantava

Se você chegou até aqui, deve ter desconfiado que estou falando de Caetano Veloso por causa do documentário “Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil. Aliás, por que um documentário que é basicamente uma longa entrevista de um senhor sentado numa cadeira diante de uma parede cinza com um quê de brutalismo precisa de dois diretores é um mistério insondável, desses que somente um fictício detetive Rouanet seria capaz de explicar.

O documentário, apresentado no Festival de Veneza, serve a dois propósitos. O primeiro e mais evidente é botar Caetano diante da câmera para contar sua experiência na prisão, logo depois da assinatura do AI-5. O segundo é simplesmente vender a versão de Caetano para “Hey Jude”, dos Beatles. Uma versão que, ao lado do cover de “Jokerman”, de Bob Dylan, é das coisas mais constrangedoras que o multiartista baiano já produziu.

(Me dizem aqui que Caetano Veloso também gravou “Come As You Are”, do Nirvana, e “Dreamland”, de Joni Mitchell. Mas não vou ouvir. Posso até ser masoquista, mas tudo tem limite).

A narrativa de Caetano sobre a própria prisão, como não poderia deixar de ser, é digna de um épico. E o mais constrangedor do documentário é justamente isso: à medida que os minutos avançam e os detalhes vão sendo contados, fica mais e mais evidente que há muita fantasia misturada à história. Não estou querendo dizer, com isso, que nada do que Caetano conta aconteceu de fato. Ou que o sofrimento dele tenha sido fingido. Mas os olhos esbugalhados, o choro contido, a boca trêmula aqui e ali denunciam uma sensação de autoimportância desproporcional. Que, por sua vez, revela um Narciso que, em seus quase 60 anos de carreira, nunca teve férias.

Já no começo da entrevista, por exemplo, Caetano descreve a prisão como um cenário de uma adaptação inferior de “O Processo”, de Kafka. Salas enormes, cadeiras de encosto alto. Numa dessas cenas, contada com uma dramaticidade evidentemente exagerada, Caetano diz que ficou numa sala assistindo a um general jantar. Só isso. O general jantava. O que, para ele, foi “uma espécie de tortura psicológica”.

Coragem de matar baratas

Em seu momento mais interessante, na verdade o único do documentário, Caetano Veloso fala do período em que ficou confinado numa solitária – embora fosse uma solitária estranha, por permitir a conversa com o preso vizinho. “Fiquei dois meses sem ver espelho”, conta ele. “A comida era muito ruim”, constata. E daí começa a falar que, naquela situação, ele não conseguia ter uma ereção. “Eu me tocava, mas não havia erotização”, diz ele, para então concluir caetanamente: “Não houve nenhuma ejaculação e nenhuma lágrima”.

Num dos trechos mais tensos do documentário (para se ter uma ideia de como “Narciso em Férias” é tedioso), Caetano conta o dia em que um soldadinho (ele se refere sempre aos soldados como “soldadinhos”) certa vez o pôs para caminhar pelas ruas da vila militar. Ele achou que levaria um tiro pelas costas. Estava com medo de morrer. Mas, na verdade, os militares só o tinham levado para cortar os cabelos.

Aí Caetano Veloso pega o violão e se põe a cantar “Hey Jude”, dos Beatles, música que ele diz ter ouvido nos radinhos de pilha dos guardas. O curioso é que “Hey Jude” é justamente uma música que fala sobre superar ressentimentos, deixar para lá, algo que Caetano não pode fazer, senão perde todo o seu cacife de intelectual politizado.

Ao que parece, a música dos Beatles deu a Caetano força para superar a prisão. A tal ponto que ele, um baratófobo (catsaridafobo) assumido, reuniu coragem para, finalmente, agir como um herói da resistência à Ditadura e matar os insetos nojentos que apareciam em sua cela.

Eis que então Caetano Veloso se põe a ler os autos de seu processo. Isso mesmo. Durante uns dez minutos que parecem dez eternidades, Caetano lê os autos do processo. Aqui e ali ele para e ri, faz algum comentário jocoso, diz ironicamente que algumas passagens são “geniais”. E declara: “Nunca defendi os sistemas socialistas. Fui ler os liberais. Até hoje não aceito programa de futuro nem proposta de arranjo da sociedade sem os princípios liberais”.

Ao fim, Caetano Veloso canta aquela que talvez seja sua música mais bonita, “Terra”.

A infinita estupidez da censura

O documentário é ruim e Caetano Veloso exagera. O que não quer dizer que o sofrimento de um menino de 26 anos não tenha sido real e digno de compaixão. Por causa de todas as bobagens que Caetano Veloso já disse ou escreveu ou cantou, da admiração dele por Lula, de seu autoritarismo ao querer proibir biografias não-autorizadas e até do romance algo nabokoviano com Paula Lavigne, “Narciso em Férias”, sem querer, expõe a infinita estupidez que é a censura e a prisão de adversários políticos.

Ah, mas eles queriam impor a ditadura do proletariado no Brasil, dirá alguém mais afoito, tirando os fiapos de botina do meio dos dentes. E eu até entendo a lógica daquele tempo. Afinal, era guerra.

Independentemente da justificativa que se use para aplacar a culpa, seja ela política ou moral, o fato é que a censura e a prisão de inimigos políticos podem ter até uma eficaciazinha no curtíssimo prazo. No médio e longo prazos, contudo, e uma vez restabelecida a ordem democrática, os censurados e presos sempre adquirem essa falsa aura de santidade que acomete Caetano Veloso em “Narciso em Férias”.

E assim o bom cantor e ótimo compositor, uma vez vítima da estupidez totalitária, deixa de ter sua obra analisada para se transformar no Caetano Veloso que temos hoje: uma personalidade política, um mártir de uma luta qualquer perdida no tempo, uma voz a influenciar jovenzinhos encantados com o marxismo 2.0 e um intelectual cuja obra é ensinada aos nossos filhos como exemplo de genialidade literária, quando não filosófica.

Alguém cuja relevância artística foi inflada pelos dois meses que passou numa prisão por ter supostamente cantado uma versão desrespeitosa do Hino Nacional.

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