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Às vezes confundo a lua cheia com o sol e me levanto no meio da noite para acordar as abelhinhas.
Às vezes confundo a lua cheia com o sol e me levanto no meio da noite para acordar as abelhinhas.| Foto: Bigstock

Estava eu lá quieto, cuidando do apiário e ouvindo a sinfonia de zunzuns das abelhas quando meu bisnetinho Chico, de nove anos, apareceu correndo e gritando “Biso, biso, só você pode me ajudar!” como se fosse uma questão de vida ou morte. Tudo é uma questão de vida ou morte para as crianças. Me virei e disse para ele ficar onde estava, por causa das abelhas. Daí fechei a colmeia, me livrei dos insetinhos teimosos grudados no meu capacete e fui até ele.

Chico estava ofegante e trazia uma folha de papel na mão. Folha de papel? Desculpe, é a idade. Ainda não me acostumei aos tablets ultrafinos que as crianças de hoje em dia usam. De qualquer forma, ele balançava o tablet branco no ar como um francês que não perde uma oportunidade de se render. Me aproximei o mais rápido que pude, numa corrida facilmente vencida por um jabuti. Ao chegar bem perto do Chico, me abaixei para que ele gritasse no único ouvido que ainda tinha alguma função.

Chico estuda na Escola Revolucionária Luiz Inácio Lula da Silva. Lá, ele aprende que gente como o bisavô foi muito má e que o Estado só nos mantém vivos porque ninguém sabe cuidar das abelhas como os octogenários – mesmo os mais reaças. O mel é o principal produto de exportação da República Popular Democrática Vegana do Brasil. Ainda assim, eu e Chico temos uma ligação especial. Vai ver ele me tem como um herói; vai ver, como uma máquina de lhe dar generosas mesadas.

Bem de vez em quando, a professora de Neohistória dele, por motivos que me fogem à compreensão, manda o Chico me entrevistar. Pode ser que seja apenas curiosidade acadêmica (duvido), pode ser que a professora seja até uma rebelde (elas existem), mas o mais provável mesmo é que ela faça isso para garantir que eu não esqueça quem fui e meu bisnetinho não esqueça quem sou.

Tiro o capacete de apicultor e solto meus cabelos brancos e longos (fiz implante ao completar 50 anos). Chico afasta uma abelha que zumbe, ainda indignada, e me estende a “folha de papel”. Pergunto qual é o assunto da vez. Já tive de falar de capitalismo – e de me assumir um ex-capitalista malvadão explorador dos oprimidos. Já tive de falar de racismo – e de me assumir um branco incorrigível. Já tive de falar de democracia – e reconhecer que acreditava nessa história da carochinha. E assim por diante.

O assunto da vez é a Grande Pandemia de 2020, também conhecida como Genocídio Bolsonariano, Ditadura do Negacionismo, Grande Delírio Cloroquínico ou simplesmente Peste Capitalista. E as perguntas se sucedem. Tive Covid? Defendi o “tratamento precoce”? Fiz campanha antivacina? Acreditei nas previsões dos pandeminions (agora chamados de pandesavers)? Usei a palavra “pandeminion? E, por fim, quando a OMS declarou o fim da pandemia, comemorei ou chorei?

Fui respondendo às perguntas uma a uma, me lembrando de quem era naquela época. Dos debates violentos nas redes sociais. Do amigo que me chamou de “sarrista” e criticou minha “indiferença cívica”. Do medo de pegar um aviãozinho e ir ali até São Paulo. Das máscaras de pano. Nos hectolitros de álcool em gel. Da grande festa que se seguiu ao anúncio de que estávamos livres do vírus chinês. Justo eu, que às vezes confundo a lua cheia com o sol e me levanto no meio da noite para acordar as abelhinhas.

Chico vai anotando tudo no mandaringuês que me recuso a aprender. Ele parece feliz em ouvir aquilo. Como se eu fosse de alguma forma especial por ter vivido um tempo turbulento e mágico, no qual as hashtags representavam mesmo algum perigo a quem se envolvesse na discussão sanitária. Ou como se eu fosse um vilão absoluto, daqueles que ele exibe para os amigos com o mesmo orgulho de quem acabou de tirar um catotão do nariz e diz que não sente nojo de nada.

O menino pula do meu colo cansado e volta correndo para a casa, aos gritos de “o biso era genocida! O biso era genocida!”. Na mochila que ele leva às costas, vejo o emblema da escola, com a foto do barbudão e uns caracteres em mandaringuês que o Chico leu para mim, mas cujo significado fiz questão de esquecer. Ele se perde no abraço materno e eu... Bom, eu demoro meia hora para me levantar, ouço todas as vértebras fossilizadas estalarem e, em meu passo de cágado, erro até o apiário, pensando: “Este texto saiu bem mais triste do que o planejado”.

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