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Para “fins estatísticos”, agora o prêmio Jabuti quer saber a raça dos que se inscreverem no concurso.
Para “fins estatísticos”, agora o prêmio Jabuti quer saber a raça dos que se inscreverem no concurso.| Foto: Reprodução/ Twitter

A distância, a política e a vida nos afastaram, mas antes disso eu e Sérgio Rodrigues fomos razoavelmente próximos. Digo, cariocamente próximos, ainda que ele seja mineiro e eu, paranaense. Do tipo que diz “aparece lá em casa”, mas nunca dá o endereço, sabe como? Além de extremamente inteligente, sem falar no talento literário, Sérgio Rodrigues sempre foi um bom papo. Tenho as melhores recordações possíveis das nossas conversas regadas a muito chope no Bar Belmonte. E é com elas que começo este texto.

Nessas conversas, geralmente contávamos com a presença de um Terceiro Elemento que, por educação e respeito, vou manter no anonimato. Era um amigo (sempre no sentido carioca do termo) também jornalista e também escritor. Um dia, depois de muito chope, bolinho de bacalhau e empada de camarão, e para a surpresa de todos no bar, o Terceiro Elemento resolveu dizer que era negro.

Nada na fisionomia dele sugeria essa negritude toda. Pardo claro, vá lá. Lindamente miscigenado, como convém a um legítimo representante desta terra onde em se plantando tudo dá. Mas negro - e se vangloriando das raízes na África profunda? De onde o Terceiro Elemento havia tirado essa? Depois de mais alguns goles e gargalhadas, a sentença foi dada: aquilo era papo (divertido) de bêbado. E o Terceiro Elemento se recolheu à sua inegável condição de “mulato claro” - para a qual ninguém dava a menor bola.

Isso foi há quase 20 anos. Naquele tempo, ainda era possível zombar da autoidentificação racial de alguém. Nem passava pela nossa cabeça a possibilidade de o Terceiro Elemento de repente se ver como negro para obter alguma vantagem pecuniária, profissional ou social. Ou literária. Há apenas duas décadas o mundo era mais simples e dava para se sentar à mesa do bar e apenas beber e rir das bobagens inconsequentes que falávamos.

(Não acompanho muito o trabalho do Terceiro Elemento, mas sei que ele está aí e é daqueles que falam em genocídio, massacre da população negra, entre a qual se inclui, e golpe).

Raça, literatura, o Terceiro Elemento e o Belmonte antes da gentrificação invadiram minha memória ontem (12), depois que Sérgio Rodrigues informou aos poucos que se interessam pelo assunto que o prêmio Jabuti agora pede (exige?) que os inscritos informem a raça. “Lamento muito informar que o prêmio Jabuti de literatura agora pergunta, na ficha de inscrição, qual é a raça do autor. Isso mesmo: o Jabuti pergunta qual é a RAÇA do autor. Você leu certo: a RAÇA. O Jabuti quer saber a RAÇA do autor”, escreveu* ele.

É mais uma medida dos progressistas para instituir a segregação racial no Brasil e nos tornar mais parecidos com os Estados Unidos, onde a convivência entre as diferentes raças sempre foi mais complicada do que aqui. E se você for contra, já sabe: é racista! Não sei se a tchurma que se reúne para cheirar mofo de sebo já cancelou Sérgio Rodrigues por seu lamento – do qual compartilho. Espero que não.

Quelônio estúpido

Posso até não ser assim uma Gabriela Prioli, mas tenho alguma experiência não só com o objeto popularizado por Gutenberg, mas principalmente com as palavras que esses objetos trazem dentro de si. E até por isso quase caio da cadeira ao perceber que aqueles que batem no peito para se dizerem pessoas melhores & mais esclarecidas só porque leem são os mesmos que defendem a segregação racial como forma de combater o racismo.

Fico me perguntando o que seria da nossa já debilitadíssima literatura nacional, marcada por sectarismos de todos os tipos, se Jorge Amado fosse reduzido à cor da pele (que, aliás, não sei identificar; vocês que estão com a paleta Pantone à mão que se virem!). Ou se a obra de Érico Veríssimo estivesse vedada aos negros só porque se passa no Rio Grande do Sul (spoiler: tem muito índio lá). Aliás, ouso perguntar aos doutos imbecis do racialismo o que seria da imagem heroica e pura do índio brasileiro sem a pena (sem trocadilho) do não-índio José de Alencar.

Aos editores e escritores que se submetem à escravidão do identitarismo, restará a marca da covardia e da desonestidade intelectual. Da alma (sim, ela existe!) entregue a um exu sedutor, que a eles promete best-sellers aclamados pela crítica, além de um simpático troféu com a imagem de um quelônio inteligente e talvez esperto, mas nada sábio.

* Depois que os racialistas explicaram que a raça dos escritores, tradutores, ilustradores e capistas estava sendo pedida apenas “para fins estatísticos”, Sérgio Rodrigues apagou o tuíte e, com ele, seu lamento. Vou continuar lamentando porque, a despeito de justificativas estapafúrdias, a postura dos organizadores do prêmio literário é sintomática de um tempo que dá importância demasiada para a raça.

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