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A cultura do fichamento deu origem ao aspismo,  que também é uma demanda do leitor.
A cultura do fichamento deu origem ao aspismo, que também é uma demanda do leitor.| Foto: Pixabay

A inteligência brasileira sofre do que Carlos Drummond de Andrade chamou de “aspismo” e Otto Lara Resende chamou de “nomismo”. Há tempos constato, como disse Clarice Lispector, “isso”. Os intelectuais, profissionais ou diletantes, não conseguem organizar qualquer tipo de raciocínio sem recorrer à “validação patética das aspas”, como já dizia José Saramago.

Talvez seja consequência do que José Paulo Paes, em seu elogiado e desconhecido ensaio "Aqui Não, Mermão", definiu como “cultura do fichamento”. Sabe como é: a pessoa perde o prazer da leitura pela leitura e, página após página, incapaz de formular uma ideia original, “vai colecionando frases e mais frases que, entre aspas, cabem em qualquer texto banal sobre assunto igualmente banal e dá a eles, texto e autor, respectivamente substância, ainda que falsa, e erudição, também falsa” (Caio Fernando Abreu, in “Estudos Sobre Alguma Coisa”).

A “cultura do fichamento” é, ainda, consequência de uma educação burocrática, desinteressada da busca pelo conhecimento e sabedoria e praticamente “tarada por um diploma”, para usar a expressão de Hilda Hilst. Isso sem falar na submissão dos leigos às palavras dos especialistas, com seu “bom dia” cheio de referências bibliográficas e notas de rodapé.

Longe de demonstrar, como sugeria Camões, "embasamento teórico ou qualquer porcaria do gênero", o aspismo/nomismo é sintoma de uma inequívoca insegurança. E também de uma boa dose do que Machado de Assis qualificou, na falta de uma palavra melhor naquela melancólica tarde chuvosa no Cosme Velho, como “babaquice”. Não se trata daquela coisa que Isaac Newton falou – e, neste caso, falou mesmo! – de ver mais longe por se apoiar sobre os ombros de gigantes. Em geral, é apenas uma tentativa patética de demonstrar erudição, de mostrar aos outros que você leu “pra c*##@”, como disse Nietzsche.

A rigor, nada contra. Até porque enxergo no aspismo também uma demanda do leitor, espectador e ouvinte. Eu mesmo às vezes me sinto “na obrigação de usar algum tipo de citação entre aspas para conferir credibilidade, peso, sustentação ao meu argumento. E tanto melhor se ela vier acompanhada por um título de doutor ou PhD”, como me ensinou Paulo Coelho (ou será que foi Carlos Castañeda?).

Nadas com grife

O fenômeno do aspismo, contudo, não se resume à citação de “nadas com grife”, para usar a terminologia criada por Roberto Campos. Sua outra face revela a desejo desesperado de se fazer relevante e, quem sabe, eterno, por meio da forja de expressão herméticas que condensariam pensamentos caudalosos. É a “publicidadizizizização da ideia”, para usar o termo imortalizado pelo inesquecível publicitário gago José da Silva (pseudônimo) nos corredores da Agência Sei.

É também a “bordização do pensamento”, como bem define um amigo meu, marqueteiro que prefere permanecer anônimo, mas que jura ser o autor do bordão “tem algo de podre no reino da Dinamarca”, apesar de eu já ter esfregado o Hamlet na cara dele. Ao que ele me respondeu dizendo que sou um típico “intelectual do nada-contra” preso a uma “Alcatraz cognitiva” e incapaz de perceber a “revolução do 1º andar” em andamento, essa mesma que um dia acabará com a “ditadura da ironia”, entronizando de uma vez por todas o “Reino das aspas”.

Por isso me lembro com uma nostalgia sempre ridícula de nomes como Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. E até do saudoso Paulo Francis, que chegou a ser considerado plagiário por usar e abusar de paráfrases. Longe de serem uns matutos incultos, eles absorviam as aspas, se demoravam na digestão e devolviam ao leitor algo muito maior e, não raro, melhor.

Se bem que “nostalgia não leva a nada”, como já bem disse Patativa do Assaré.

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