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Minha esperança para quando tudo isso tiver passado é a de que a normalidade seja outra e a mesma: cheia de discussões deliciosamente inúteis.
Minha esperança para quando tudo isso tiver passado é a de que a normalidade seja outra e a mesma: cheia de discussões deliciosamente inúteis.| Foto: Pixabay

Até semana passada os cronistas podiam se dar ao luxo de serem péssimos cronistas. Sem maiores preocupações. Dava – ah, que saudade! – para bancar o flâneur tropical e sair por aí romantizando mendigos e árvores caídas, exaltando a sabedoria dos bêbados e se surpreendendo diante de uma ruína que, oh, está abandonada pela prefeitura apesar de conter tanta história.

Mas agora não. Fomos metidos neste gulag de medo por um tal de coronavírus, que também atende pelo nome de Covid-19 e pelo carinhoso apelido de kung flu. E, por causa disso, somos obrigados a ser péssimos cronistas de dentro de casa, narrando o tédio cotidiano e as agruras do trabalho doméstico, sofrendo de banzo da normalidade.

Me refiro àquela normalidade imperfeita da qual reclamávamos quase que por impulso, no automático. Acordar e reclamar do despertador que bem podia ter deixado você dormir mais cinco minutinhos. Tomar café e reclamar do pão amanhecido. Olhar pela janela e reclamar do frio ou do calor, do sol ou da chuva. Sair para trabalhar e reclamar do carro sujo do Uber. Reclamar do bufê a quilo. Do tom de voz do chefe. Do trânsito no caminho de volta para a casa. De gente que termina o parágrafo com etcétera. Etcétera.

Estamos condenados, pois, a algumas semanas de introspeção e, por consequência, crônicas introspectivas – inegavelmente as piores. Vai ter gente em pânico por causa do vírus procurando refúgio no mais temível dos lugares: a infância. E de lá voltando com histórias que envolvem cachorrinhos e um primeiro amor, quando não surras da mãe e um livro infantil qualquer que marcou o cronista para sempre.

Haverá aqueles ainda que, Deus que me perdoe, cometerão versos. Uns falando da dor da perda. Outros falando da redescoberta do amor. Os mais jovens rimarão liberdade e verdade para falar da realidade na cidade onde impera a maldade da falta de solidariedade que nos tira a dignidade. Outros talvez metrifiquem suas existências solidárias, na esperança de comporem o soneto perfeito ou, oxalá (haverá quem usará “oxalá”), se tornarem o Dante da contemporaneidade viral.

Mesmo aqueles pouco afeitos à prosa ou aos versos se aventurarão na crônica cotidiana na rede social de sua preferência. E em poucos minutos deixarão de narrar o extraordinário ato de tomar banho para se digladiarem em batalhas políticas que não alterarão o rumo das coisas. Mas que, de certa forma, ajudam a passar o tempo. Sem falar que essas picuinhas virtuais dão ao homem a sensação de que ainda há algo de normal no mundo. Nem que o normal seja a loucura.

Os otimistas acreditam que o confinamento pode render uma espécie de minirrenascimento nas artes, agora que as pessoas têm mais tempo para pintar outra coisa que não o inconsciente abstrato. Há quem acredite até que os clássicos serão finalmente lidos e absorvidos. Que belas músicas serão compostas e ecoarão por sobre os inevitáveis cortejos fúnebres. Enfim, essas coisas todas em que os otimistas acreditam.

De minha parte, na condição de cronista cansado de tanto ruído, espero não escrever nada que se some à cacofonia. As crônicas, eu as escreverei baixinho, tocando de leve o teclado, quase como quem pede permissão para registrar cada letra. Os poemas eu os comporei à noite, antes de dormir, e deles não me lembrarei no dia seguinte. As brigas nas redes sociais eu continuarei deixando de lado. Quanto ao minirrenascimento, não vai ser um vírus a me transformar num Michelângelo, embora a argila e o gesso já estejam devidamente comprados.

Minha esperança (parca & ridícula de dar dó) para quando tudo isso tiver passado é a de que a normalidade seja outra e a mesma: com os flâneurs de sempre escrevendo críticas-sociais-cheias-de-virtude, com aquelas intermináveis discussões sobre pronomes e gêneros, com celebridades cantando Imagine e com brindes entusiasmados à mesa do bar, antes de a conversa descambar para uma pancadaria geral por causa daquele pênalti mal marcado.

E, principalmente, com aquelas reclamações por impulso que, reconheço agora, despido da minha falsa superioridade moral, não são sinal de ingratidão, e sim um colorido a mais na vida que acontece do lado de fora dessa prisão de medo.

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