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Se não consigo nem ser a imagem que faço de um escritor ideal, como posso esperar que alguém seja a imagem que faço de um presidente ideal?
Se não consigo nem ser a imagem que faço de um escritor ideal, como posso esperar que alguém seja a imagem que faço de um presidente ideal?| Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

No meio da conversa, sem querer o papo descamba para a política. Depois de muitos você-sabia-quê de um lado e outros tantos ouvi-dizer-quê do outro, eis que meu interlocutor confessa a intenção de votar lulo, digo, nulo. Educado que sou, faço a pergunta que a outra pessoa está doidinha para responder: por quê? O interlocutor abre aquele sorrisão de quem se acha muito esperto, respira fundo como se tivesse acabado de receber as Tábuas da Salvação, e me responde que Lula, ah, Lula não dá, por motivos óbvios, mas Bolsonaro também está longe de ser o presidente ideal.

Conversar comigo deve ser mesmo um porre – o que talvez explique essa solidão insistente. Porque no átimo seguinte dou uma de esgrimista retórico, grito “en garde” e ataco com uma dúvida óbvia, mas pela qual o interlocutor não esperava. Não àquela hora. Nem depois de tanto vinho. “O que seria um presidente ideal para você?”, pergunto. E vejo a pergunta ficar no vácuo. O interlocutor pede a conta, se levanta e vai embora. O prejuízo, em vários sentidos, é todo meu.

Volto para casa e fico com a proverbial pulga atrás da orelha. Me deito e, ao meu lado, a mulher ressoa melodicamente, porque roncar é coisa de homem. A Catota, percebendo minha inquietação, me olha com cara de para-de-se-mexer-que-eu-quero-dormir-pô. Até que desisto e vou para a sacada pensar neste texto enquanto assisto ao espetáculo de dois bêbados que, por algum motivo, escolheram a esquina do meu prédio para resolver suas desavenças.

O que seria um presidente ideal? Estou aqui de pé na sacada, vasculhando todos os cantos da memória carcomida em busca de boas referências históricas recentes. Sem sucesso. Dá para pensar em Churchill, mas Churchill foi primeiro-ministro. Sem falar nos defeitos expostos até mesmo na biografia laudatória escrita por Paul Johnson. Dá para pensar num Reagan, num Roosevelt, mas nem os grandes presidentes norte-americanos podem ser considerados “ideais”. Afinal, ambos (todos) tiveram sua porção de erros e crises.

É uma coisa deveras insuportável essa de ter de, periodicamente, escolher líderes humanos cujas decisões podem afetar direta ou indiretamente a nossa vida. Líderes falhos e bem distantes do ideal de qualquer pessoa. Aliás, um dos mistérios dessa busca insana por um presidente ideal é justamente este: quem determina a aparência, o comportamento e as decisões de um presidente ideal?

Eis que baixa em mim l'esprit d'escalier e me dá vontade de ligar para o interlocutor. Mas consulto o relógio e está tarde. Se essa for mais uma amizade perdida para a política, paciência. Na desistência, porém, me permito pegar um caderninho para anotar a reflexão tardia. “Se não consigo nem ser a imagem que faço de um escritor ideal, como posso esperar que alguém seja a imagem que faço de um presidente ideal?”, escrevo aos garranchos, na esperança de na manhã seguinte decifrar a mensagem apressada. (Deu certo).

E aqui vai uma confissão provavelmente indevida, dessas que a gente se sente à vontade para fazer na madrugada, enquanto assiste a dois bêbados que agora trocaram os insultos e sopapos por um abraço fraterno. Pelo menos espero que fique só no fraterno. Meu presidente ideal seria alguém parecido com o imperador Marco Aurélio (não confundir com o ex-semideus Marco Aurélio, aquele do STF). Ou melhor, alguém parecido com a imagem que eu faço do imperador Marco Aurélio a partir da leitura das “Meditações”.

Ah, daria gosto assistir às lives de quinta-feira ouvindo conselhos como “você deve refletir constantemente sobre as pessoas das quais você busca validação”. Seria algo próximo do ideal abrir os jornais e ler a manchete “'Não perca tempo discutindo como um bom homem deve ser; seja', diz o presidente”. Mas sejamos sinceros: no vulgar concurso de popularidade em que se transformou essa tal de democracia não há espaço para homens sábios. A democracia é o governo dos espertos – e isso não é um elogio.

Volto para a cama. Tropeço. Faço o maior barulho. E cometo o erro mortal de acordar a mulher, que me pergunta onde eu estava. Ou melhor, onde é que você estava???!!! Como se fosse do meu feitio sair de madrugada para, sei lá, jogar biriba com os amigos. Digo que estava na sacada, passando frio e pensando no presidente ideal e nas justificativas estapafúrdias que muita gente dá para explicar uma rejeição ao atual presidente que é meramente estética e emocional. E que às vezes é simplesmente o discurso dissimulado de alguém sem coragem para assumir certo apreço pelo Luiz. Sim, o Inácio.

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