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Na guerra estética entre Bolsonaro e Dória, até funk virou arma para intelectuais que não veem problema em se aliar à esquerda que até ontem condenavam.
Na guerra estética entre Bolsonaro e Dória, até funk virou arma para intelectuais que não veem problema em se aliar à esquerda que até ontem condenavam.| Foto: Reprodução/ YouTube

Acordo no meio da noite com o ouvido latejando. Uma dor insuportável ou lancinante – você escolhe o clichê. Tento abrir os olhos, mas a dor se espalha para o lado esquerdo do rosto. Fico ali paralisado, reclamando da dor como se reclamar tivesse algum efeito analgésico. É quando, ao meu lado, minha mulher canta baixinho: “Bum bum tam tam, bum bum tam tam”. Caio na gargalhada. Sinto uma pontada de dor, dessa vez na perna. É minha mulher que me belisca e resmunga que eu não a deixo dormir.

Na tarde anterior, estivemos conversando sobre o funk “Bum Bum Tam Tam”, transformado em propaganda na guerra política entre Jair Bolsonaro e João Dória. Obra de um tal MC Fioti, a música precisou de cinco compositores: José Álvaro Osório Balvin, Juan Manuel Gonzalez, Leandro Aparecido Ferreira, Nayvadius Wilburn e Stephanie Allen. Seu maior atrativo, contudo, é um sample de Bach. Que, esclarece-me um site musical especializadíssimo, é “um dos maiores compositores de todos os tempos”.

Em sua versão original, apolítica, a música fala daquelas coisas caras ao funk. As novinha. Os plural. Os “bum bum tam tam” tremendo e mexendo – o que quer que o poeta tenha querido dizer com isso. Em seu momento de maior profundidade, os compositores propõem uma importante reflexão: “Autenticamente falando/ E aí, pô/ Nós 'tá tipo como”. O que, imagino, seja uma referência a um enunciado de Kierkegaard.

Na versão politizada, contudo, a riqueza melódica dos versos “É a flauta envolvente que mexe com a mente/ De quem tá presente/ As novinha saliente/ Fica loucona e se joga pra gente” foi substituída pela aridez da linguagem científica: “É a vacina envolvente que mexe com a mente de quem tá presente/ A vacina é saliente, vai curar ‘nois’ do vírus e salvar muita gente”. Uma pena.

Tem gente escolarizada, ilustrada, esclarecida, iluminada e culta elogiando Mc Fioti e sua composição. Houve quem dissesse, por exemplo, que com essa música o funkeiro já fez mais do que o governo brasileiro no combate à Covid-19. E eu nem discordo da essência do argumento, apesar da demagogia. Curioso mesmo é notar como certa intelectualidade é capaz de se unir ao que há de mais abominável na cultura quando o objetivo é restaurar uma política que eles julgam esteticamente correta.

“Nóis tá tipo como?”

A dor piora. Viro para um lado e para o outro e decido me concentrar no teto. Sou inundado, primeiro, por uma estranha sensação de gratidão. Parece coisa de maluco e talvez seja – mas não é. Nos últimos dias, por uma conjunção de fatores, tenho atentado para as sensações rotineiras da vida. Respirar. O sabor do metal do garfo de encontro à língua. A sensação da água quente batendo na calva. O som das motos e seus escapamentos furados.

De qualquer forma, a propaganda em forma de funk parece surtir efeito na minha alma sonolenta. E talvez tenha conseguido também reforçar a sensação ainda tímida de que um processo de impeachment não parece assim mais tão absurdo. “O vento mudou”, dirá alguém. E é possível, embora o argumento esotérico soe bastante com a o do torcedor coxa-branca, que sempre acredita na improvável virada aos 46 do segundo tempo – e acaba por tomar outro gol.

Às cinco da manhã, acordo pensando se o atual presidente deve ou não sofrer impeachment – e por quê. Não é uma boa forma de começar o dia, reconheço. Mas acontece. E, em todo caso, é melhor do que acordar cantarolando “Bum Bum Tam Tam”. Instintivamente, parto do pressuposto de que todo impeachment é como uma confissão de culpa da democracia. Como se ela de repente cobrisse os seios à mostra naquela famosa pintura de Delacroix que retrata a Liberdade e, toda recatada, pedisse desculpas por não saber usar direito os pesos e contrapesos e muito menos o processo eleitoral.

Por ora, esse movimento que une “mortadelas” e “coxinhas” me parece apenas uma rebeldia de cunho fundamentalmente estético. Uma rebeldia baseada numa repulsa elitista no tocante à qual não sou imune, talquei? Mas que, curiosamente, não vê problema algum em se aliar à retórica mais nefasta da oposição irracional, do funk metafísico de MC Fioti (“Nóis tá tipo como?”) às palavras de ordem de José Dirceu.

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