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Para Nelson Rodrigues, Mendonça é um Pacheco-da-Repartição e um cristão envergonhado.
Para Nelson Rodrigues, Mendonça é um Pacheco-da-Repartição e um cristão envergonhado.| Foto: Fotos Públicas

Suponho que você tenha chegado a este texto com uma opinião já formada e consolidada sobre a sabatina de André Mendonça, ops, ministro André Mendonça. Sem problemas. Até porque não pretendo me ater, aqui, às respostas do nome indicado pelo presidente Jair Bolsonaro. Acredito que todo mundo com um mínimo de discernimento percebeu que, nesse processo, Mendonça foi o aluninho obediente falando tudo o que os professores queriam ouvir.

Ao assistir à sonolenta sabatina, marcada por respostas que mais pareciam redação do Enem, comecei a pensar em meu papel como cronista deste nobre periódico. E, a partir daí, confesso que me permiti sonhar, ignorando a balbúrdia em torno de André Mendonça e dos senadores que se estendiam em discursos carregados de lugares-comuns e até umas estatísticas curiosas (“para cada mulher morta, duas eram negras”, soltou a senadora Eliziane Gama) e tentavam fazer com que o agora ministro tropeçasse em algo politicamente incorreto.

Uma vez acionado o modo “imaginação turbo”, meus poucos (mas razoavelmente eficientes) neurônios se puseram a criar um paraisinho com ruas ladeadas por postes de luz dos quais jorravam a voz de Ella Fitzgerald. Tá, acho que já usei essa imagem aqui na Gazeta do Povo. É que alguns dos meus poucos neurônios acabaram de entrar para o sindicato e, como não posso demiti-los, dá no que dá.

Paraisinho chato

Nesse paraisinho chato, mas meu, há uma birosca onde se reúne todas as tardes uma gente legal. Está lá o Rubem Braga cercado por passarinhos e conversando com o Nelson Rodrigues. Que, para minha surpresa, não só tirou a verruga da cara como agora usa piercing no nariz. Vai entender. Também estão lá Fernando Sabino e Paulo Francis. O primeiro tenta, pela enésima vez desde que chegou à Eternidade, explicar a Francis o que o levou a escrever “Zélia, uma paixão”. Também pela enésima vez Francis responde a Sabino com um “waaaaal” que ecoa pelo Universo. Cada qual com sua danação.

Entro na birosca e sou surpreendido por Vinícius de Moraes que, lá do fundo do estabelecimento, bebendo seu uisquinho e namorando uma moça 13 séculos mais nova do que ele, canta: “Lá vem o chato, passo aqui, passo acolá”. Um pândego, esse poetinha. Me sento para ouvir Rubem Braga. Que, para fingir intimidade, chamo de “o Rubem”. Na Eternidade, o cronista também tem essa mania de passarinho e árvore.

É um tal de sabiá para cá, andorinha para lá. E, depois de mil citações a espécies vegetais que ignoro totalmente, o Rubem foca meu olhar no copo d´água que André Mendonça leva à boca de tempos em tempos. “Bebendo com sofreguidão”, intervém um juvenil Nelson Rodrigues que (nem tinha reparado!) pintou o cabelo de rosa. Vai entender.

O Rubem fala do nervosismo que, para ele, é sinal de uma necessidade incurável de existir para a multidão. Nelson Rodrigues interrompe o Rubem para ver em André Mendonça apenas um Pacheco-da-Repartição sem bigodinho e sem alma, um tecnocrata se deixando moldar pelas necessidades alheias, um cristão envergonhado se sujeitando àquele espetáculo por pura vaidade. “Nada pior do que um cristão envergonhado!!!”, solta ele, peremptório, cabal e taxativo – nelsonrodrigueano.

Nelson Rodrigues ainda se desculpava pela exclamação tripla quando Fernando Sabino, sorrateira e mineiramente, se intrometeu na conversa para falar do olhar de menino de André Mendonça. Uns olhinhos pequenos e fundos, de uma tristeza que a gente, só de olhar, sabe que cheira a vara de marmelo. Não é difícil vê-lo de uniforme escolar tomando seu Toddynho num canto e sonhando com vênias futuras. “Mas a boca curvada para baixo, ah, essa nunca vai abandoná-lo. Ele está fadado a uma tristeza muito mais profunda do que somos capazes de compreender”, atesta Sabino. Se eu disser que Paulo Francis revirou os olhos, você acredita?

Pois Paulo Francis revirou os olhos. “Waaaaal, quanta jequice!”, disse ele. Para logo em seguida analisar palavra por palavra do “discurso lunar” de André Mendonça. Ao escutar que o agora ministro do STF falou que sua nomeação para a corte era “um passo para o homem e um salto para os evangélicos”, Neil Armstrong (que por algum motivo também estava presente à birosca) disse que prefere ser confundido com o Louis. “Cada um ter a lua que merecer”, disse ele, soando um pouco como Glenn Greenwald.

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