• Carregando...
Resta-me, portanto, preencher o espaço que me resta pedindo desculpas ao leitor que chegou até aqui e que talvez esteja decepcionado.
Resta-me, portanto, preencher o espaço que me resta pedindo desculpas ao leitor que chegou até aqui e que talvez esteja decepcionado.| Foto:

Atenção porque o texto vai começar. E eu, como escritor, tenho uma única chance de atrair a atenção do leitor para o que tenho a dizer – se é que tenho alguma coisa a dizer. Não é fácil. Em meio a essa pandemia interminável de distração, conquistar o leitor já no primeiro parágrafo é como matar uma barata usando um bumerangue – ao estilo tradicional, digo, não a esmagando com o bumerangue, o que seria bem fácil.

E lá se foi o primeiro parágrafo e minha chance. Será que eu consegui? Não sei. Jamais saberei. A partir de agora, prossigo escrevendo o texto meio que às cegas. É como, voluntariamente, por puro masoquismo, se perder num emaranhado de ironias que não sei se serão compreendidas, de metáforas gastas, de referências talvez bizantinas e até de um ou outro lugar comum – porque ninguém é de ferro, não é mesmo?

Aí eu percebo que já estou no terceiro parágrafo. Desculpe. Estava aqui tão absorto nas barbas-de-bode, cipós, trepadeiras e urtigas que enfeitam o caminho sombrio até o ponto final que não me dei conta de um detalhe importante: o assunto. Coisa que, aliás, nunca me faltou – graças a Deus.

O assunto “falta de assunto”, aliás, é um dos maiores clichês deste gênero literário minúsculo e com um quê de ridículo chamado crônica. Até porque a crônica é a prima mais próxima daquela redação escolar que você tanto odiava escrever no colégio. Até limite de linhas (ou, no meu caso, caracteres) tem. A crônica era para ser um oásis neste cenário árido que é o noticiário. E tome chavão!

A primeira vez que tomei conhecimento da falta de assunto como assunto foi na 7ª série. Já naquela época eu era o metido a tirar 10 em redação. Só que, num dia fatídico (todo dia é um dia fatídico para o escritor sem talento ou com um talento mediano), meu amigo Bruno, um menino enorme, precocemente corcunda e de passo lerdo, além de caladão demais para o meu gosto, foi publicamente elogiado pela professora por sua redação. Na qual ele dizia que não tinha o que escrever.

Se minha inveja pré-adolescente lembra bem, a professora até mandou que batêssemos palmas para o Bruno, aquele filho da mãe talentoso!

O problema do cronista hoje não é a falta de assunto. É combinar a profusão de assuntos com o desejo monotemático do leitor contemporâneo. Porque o leitor contemporâneo, você e eu sabemos, só quer saber de uma coisa: política. Ou seja, o leitor só quer saber da realidade naqueles corredores frios e gabinetes cafonas, com aqueles personagens todos iguais em seus ternos sóbrios e suas gravatas de nó pronto.

O leitor está viciado em realidade. Ele vai passando pelas notícias, fica indignado aqui, vê sua opinião confirmada acolá, se detém um minutinho num anúncio, e continua, até se deparar com a crônica intitulada “Coloque um título bem chamativo aqui, Marcela”. Mas o que é que esse texto está fazendo aqui?, se pergunta ele. Quem esse cara pensa que é para sugerir que eu me aliene – nem que seja por uns parágrafos apenas?

É preciso muita sorte para que o leitor se pergunte e até ria diante do título que pretende se passar por um erro, um recado do autor para a editora, mas que acabou passando assim mesmo. É preciso mais sorte ainda para que o leitor morda a isca do primeiro parágrafo e acompanhe o raciocínio do cronista até este ponto. E que, tendo chegado até aqui, o leitor pense: “ah, que se dane, agora vou até o fim para descobrir aonde isso vai chegar”.

Se continuo o texto é porque me sinto sortudo. Porque acredito que alguém chegou até aqui e que está disposto a ouvir o pouco que eu tenho a dizer no espaço que me resta. Mas o que eu tenho a dizer mesmo? O espaço é pouco para começar e terminar um causo. Pouco para eu transmitir uma mensagem cifrada que será compreendida por todo mundo, menos pelo destinatário. Menor ainda para fazer o que eu gostaria, que é falar da preferência das pessoas pela realidade-realidade em detrimento da realidade-fantasia da crônica.

Resta-me, portanto, preencher o espaço que me resta pedindo desculpas ao leitor que chegou até aqui e que talvez esteja decepcionado. Ainda mais se, para ele, não me fiz claro neste meu intento de pegá-lo pela mão e darmos juntos um passeio pelo assombrado bosque dos devaneios, dos raciocínios tumultuosos, dos tropeços de lógica, dos medos (sim, plural) de não ser compreendido e dos mais fúteis prazeres sintáticos, rumo não a uma conclusão daquelas que, de acordo com a professora da 7ª série, precisa começar com “precisamos nos conscientizar de quê”, e sim a um ponto final que na verdade não encerra nada.

Porque na página seguinte há uma notícia ou entrevista ou artigo ou anúncio e no outro dia este universo muito limitado e próprio se repete e lá fora faz sol ou chove e dentro da gente existe apenas esse turbilhão de palavras (e fotos) que tentam abraçar o mundo e compreendê-lo e talvez repreendê-lo ou exaltá-lo – mas que fracassam miseravelmente até em expressar uma ideia.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]