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Logo ele de quem foi tirado o direito legítimo e (pensava-se) inalienável de olhar para dentro de si e ostentar o pronome a muito custo conquistado: eu.
Logo ele de quem foi tirado o direito legítimo e (pensava-se) inalienável de olhar para dentro de si e ostentar o pronome a muito custo conquistado: eu.| Foto: Bigstock

Ele foi admoestado por uma leitora que reclamou do excesso da primeira pessoa do singular, o famigerado “eu”, nas crônicas. “Você é subjetivo demais!”, desesperou-se ela. E ele também. Ele não sabe o que fazer e, enquanto escreve essas linhas, fica pensando no ridículo que seria dar uma de Pelé e se referir a si mesmo na terceira pessoa do singular. Se bem que uma distância entre o “ele” percebido pelos outros e o “eu” percebido por si mesmo talvez criasse a armadura de que ele tanto precisa no momento.

Reprimendas desse tipo são corriqueiras e, na maior parte dos casos, bem-vindas. Às vezes eu, digo, ele as lê para a esposa e os dois começam a conversar e uma coisa leva a outra e, quando dão por si, ambos estão rindo a risada gostosa daqueles que não perderam a capacidade de admirar os próprios fracassos. “Ninguém mais quer conversar”, sentencia ele, fatídico como sempre.

Outro leitor diz que ele é pernóstico e usa palavras pedantes como “pernóstico”. Poderia ter dito apenas metido. Ou arrogante. Mas como explicar que as palavras têm um propósito que às vezes é musical? Que pernóstico! Como explicar, ainda, que ele insista em não subestimar o leitor que faz questão de derrubá-lo de um pedestal que ele não ocupa?

E tudo isso ele vai digerindo aos poucos. Logo ele que odeia mesóclises e ênclises e pontos-e-vírgulas (não tem hífen, mas aqui vai assim mesmo porque ele quer). Logo ele que rejeita latinórios e tem alergia a “outrossim” e “todavia”. Logo ele de quem foi tirado o direito legítimo e (pensava-se) inalienável de olhar para dentro de si, dispor os bons sentimentos sobre a lareira, jogar os maus sentimentos na privada, e ostentar o pronome a muito custo conquistado: eu.

Essas, contudo, são as reprimendas formais, nascidas da amargura alheia que ele não entende nem tem como contornar. Tivesse, talvez abraçasse o feitor azedo e, com esse gesto, talvez, sempre talvez, um zilhão de talvezes, o visse abandonar a chibata do azedume. Mas o que é que eu, digo, ele está dizendo, meu Deus? Ele não pressupõe amargura alheia. Não sempre. E definitivamente não numa manhã de sol lindona como esta.

Não tem saída 

Se a forma incomoda e não consegue (não adianta nem tentar!) transpor os arames farpados das idiossincrasias (ops), que dizer do conteúdo? Ele ainda tenta argumentar que é tudo uma conversa. Uma. Grande. Conversa. Tenta convidar as pessoas a se sentarem, oferece salame e cerveja que, ok, talvez não esteja tão gelada assim, mas.

Mas a verdade é que há e sempre haverá algumas admoestações que parecem tiradas da cabeça de uma Annie Wilkes, a vilã com um quê de comicidade interpretada por Kathy Bathes em “Louca Obsessão”. Ele não pode falar mal disso. Ou bem daquilo. E tampouco pode ficar em cima do muro. Expressar dúvidas? De jeito nenhum! Nem ouse dizer que o assunto não interessa. Ou que interessa, apesar de você ter noção do ridículo.

Se ele demonstra comiseração está sendo fraco. Ou arrogante. Se cede à indignação, é descontrolado, precisa tomar um remedinho urgente. Se não compartilha da pandemia de raiva é porque vendeu sua alminha por trinta dinheiros. Se ele só quer ficar num canto, admirando melancolicamente a campo de batalha e pensando que um dia esse teatro todo terá fim e, caramba, como é que a Humanidade pode se esquecer tão facilmente de sua finitude e coisa e tal – aí é porque ele não tem jeito mesmo. Chega de mimimi, cara!

Silêncio reflexivo

Ele pensa em encerrar o texto dizendo o óbvio: é impossível agradar a todos os leitores. Ainda mais vivendo num mundo obcecado por certezas e praticamente exaurido da autodúvida. Mas dizer isso seria sugerir como solução o silêncio – que é uma forma de desistência, de confissão de derrota. Quando não de covardia.

Por isso ele manda às cucuias a amargura, própria e alheia e põe Ella Fitzgerald para se esquecer brilhantemente da letra de “Mack The Knife” ou improvisar em “How High the Moon” (que disco!). E, só porque pode, porque quer, porque é livre e porque não vê nada de mau nisso, eu me permito terminar o texto com umas reticências que, espero, um dia conquiste os leitores pelo que é: um convite ao delicioso silêncio reflexivo (mas nunca estéril ou acovardado) que por vezes paira entre nós, amigos…

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