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O coronavírus é o inimigo. O problema é que o inimigo está dentro das pessoas, na forma de partícula nociva, de medo ou na forma de ideias hereges.
O coronavírus é o inimigo. O problema é que o inimigo está dentro das pessoas, na forma de partícula nociva, de medo ou na forma de ideias hereges.| Foto: Pixabay

Pela quantidade de indiretas que leio nas redes sociais, deduzo que perdi um amigo. Provavelmente mais de um. Me xingam de tudo. De canalha a genocida (!), passando por obscurantista, terraplanista e até adorador da morte. Só não têm coragem de dizer que escrevo mal – o que já é alguma coisa.

O curioso é que não nego nem afirmo qualquer coisa em relação às políticas que estão sendo adotadas para conter o coronavírus. Já disse que reconheço minha pequenez, ignorância e insignificância. Do conforto incômodo do meu isolamento, entre um gole e outro de espumante e rodelas de salame, privilegiado que sou, só observo e leio os mais variados pontos de vista, tentando desesperadamente não cair no desespero.

E assim vou passando o tempo, alternando otimismo e decepção. Ou melhor, usando as decepções cotidianas como alimento para o otimismo.

Da ciência que tanto amo e que tanto me fascina desde que eu passava as tardes entre tubos de ensaio e aranhas-marrons no porão da casa de um amigo no Bairro Alto, misturando ácidos e bases só pra ver o que acontecia, esperava o maravilhamento de quem se sabe capaz de superar esse Everest. Mas encontro apenas o niilismo de laboratório.

Dos líderes políticos esperava... Não esperava nada. E até por isso eles são os que menos me decepcionam. Pelo contrário, os líderes políticos são os únicos que, em meio a essa balbúrdia toda, continuam fidelíssimos às suas naturezas, estimulando o caos para vender uma promessa nunca cumprida de ordem, quando não de perfeição.

Dos amigos eu esperava a amizade em sua manifestação mais nobre: a aceitação. Que se expressa sobretudo pela discordância respeitosa e até mesmo pelo insulto carinhoso de quem só quer o bem da outra pessoa, por mais que tenhamos chegado a conclusões diferentes sobre o que quer que seja. Aceito ser o idiota, mas nunca o canalha; aceito ser o Pedro Bó, mas nunca o adorador da morte – seja lá o que for isso.

Mas a peste tem dessas coisas. É o que a torna muito parecida com a guerra – daí porque hoje em dia está mais do que revogada a Lei de Godwin, aquela que impedia que se fizesse analogia entre qualquer coisa e Hitler. O coronavírus é o inimigo. Até aí, tudo bem. O problema é que o inimigo está dentro das pessoas, na forma de partícula nociva, de medo ou, pior ainda!, na forma de ideias hereges. Como aniquilar esse inimigo que usa o ser humano como escudo?

Há quem proponha aniquilar o ser humano. Ao que parece, assim se eliminam dois males com uma carga viral só: aquele que pensa diferente e também o vetor em potencial da Covid-19.

Exagero? Tem isso também. O coronavírus ataca nossas vias aéreas e nosso senso de proporção. Daí porque tudo o que gira em torno desse nanomonstro egocêntrico é hiperbólico, do pânico ao otimismo, das manifestações de covardia e de coragem ao espírito tirânico nas redes sociais ou no grupo de WhatsApp do condomínio, da queda no PIB à quantidade de valas abertas nos cemitérios.

Se houver futuro e se nesse futuro meus netos me perguntarem como foi viver no tempo da pandemia que virou peste, vou responder que tinha água quente no chuveiro, comida indiana sendo entregue na porta de casa e até manteiga francesa na gôndola do mercado. Mas tinha também muito fatalismo, um bocado de pulsão de morte e ortodoxias às pencas.

No final das contas, provavelmente concluirei para este meu neto boquiaberto que vivemos uma peste de ideias pestilentas. Das quais tentamos nos proteger num Auschwitz de medo, onde alguns foram ao mesmo tempo prisioneiros e carrascos.

Mas passou. Porque sempre passa.

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