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Nesta crônica, que era para ser diminuta, faço um torto e apressado elogio da mansidão. E, se ela não encontrar leitores, ficarei com raiva.
Nesta crônica, que era para ser diminuta, faço um torto e apressado elogio da mansidão. E, se ela não encontrar leitores, ficarei com raiva.| Foto: Reprodução/ IMDB

Minha crônica de hoje não tem humor nem dor de ouvido. Na verdade, ela se resume a uma frase que nem de minha autoria é e que me apareceu de súbito nas redes sociais. Foi o tradutor Pedro Sette-Câmara quem escreveu, há um ano, as palavras que se seguem: “Existe há um tempo esse estranho pressuposto de que se eu não conseguir contagiar você com a raiva que sinto de X, então você está no mínimo mancomunado com X, provavelmente é mau-caráter e, numa hipótese generosa, um completo imbecil”.

Essas palavras foram escritas em meio à onda de indignação por causa do infame discurso nazista do ex-secretário de cultura Roberto Alvim. Sette-Câmara não compartilhava da mesma raiva que eu, por exemplo. E, por expressar certa mansidão diante do episódio que culminou na demissão e ostracismo de Alvim, foi acusado de estar mancomunado com X, de ser mau-caráter ou, na melhor das hipóteses, um completo imbecil.

Elogio da mansidão

A crônica era para ser só isso mesmo. Eu, que insisto em não nivelar o leitor por baixo, apesar de aqui e ali reclamarem que uso palavras difíceis, acredito que muitos já entenderam que vivemos uma epidemia de raiva e que a menção ao “estranho pressuposto” de que fala Sette-Câmara aponta para um improvável e contraintituivo elogio da mansidão. Que alguns também conhecem como “a arte de engolir sapos”.

Em condições normais, portanto, encerraria por aqui, deixando no ar essa proposta de ver no homem que não compartilha da sua raiva política/estética apenas alguém que, estranhamente ou não, está em paz. Em paz com governo, com pandemia, com o mais recente escândalo envolvendo alguma celebridade no BBB21. Com o rumo das coisas, qualquer que seja ele e por mais apocalíptico que ele pareça. Com a vida. Uma paz que, certamente, é transitória, frágil e foi conquistada com algum sacrifício. Nem que seja o sacrifício de conter o inegavelmente prazeroso impulso da raiva.

Mas não adianta. Da mesma forma que precisamos encontrar culpados para nossos infortúnios, desconfiamos daquele que não comunga da nossa raiva. Como você pode não se indignar com a morte de pessoas por falta de oxigênio?, me pergunta alguém evidentemente indignado – e não sem razão. Minha resposta a esta e outras perguntas cheias de indignação, revolta e... raiva é um silêncio que pode ser confundido com um dar de ombros. Não é. Está mais para resignação.

E uma certeza talvez ultraconservadora (sic) de que nenhum movimento brusco e nenhuma violência retórica jamais será capaz de transformar essa raiva em algo virtuoso. A pessoa que se define como antagonista, isto é, como antiqualquercoisa e antitudoissoqueestáaí se define, veja só, por aquilo que odeia, que rejeita, que não aceita, que não suporta. Não sei você, mas essa não é a vida que quero para mim. Ao menos não mais.

Nem que seja só por hoje

Desculpe pelo tamanho da crônica, mas precisei abrir mais este intertítulo para falar mais uma coisinha. Não vá embora ainda.

Não que eu me veja assim como um ser iluminado, imune à raiva. Longe disso. Sinto raiva sobretudo quando vejo pessoas cuja inteligência admiro sucumbirem ao poder encantador da raiva comungada. Essa raiva que a gente publica nas redes sociais à espera daquele like perverso. Aquele, sabe? Sinto raiva ainda de quem dissemina a raiva e às vezes me pergunto se fazem isso porque estão mancomunados com X, se são mau-caráter ou se, na melhor das hipóteses, são completos imbecis.

Mas daí, como que por milagre, vejo um desses homens e mulheres num eterno ataque de fúria reclamando da dificuldade de pagar as contas – o que é sinal de que ficou de fora do conluio, se é que conluio houve. Outro publica uma foto expressando todo o amor do mundo para o filho – o que é sinal de, no mínimo, um caráter promissor. E outro, aquele que eu poderia apressadamente julgar um completo imbecil, bom, essa pessoa viveu coisas que não vivi, leu coisas que não li, aprendeu coisas que não aprendi – e talvez, só talvez, lhe tenha faltado proteína na infância. Vai saber.

Se essas pessoas, portanto, cedem aqui e ali à raiva política e estética, e se às vezes essa raiva espirra sobre mim ou sobre as pessoas que amo, é porque elas têm motivos outros que não o interesse financeiro, o mau-caratismo ou a imbecilidade completa. Ou talvez talvez sejam esses os motivos mesmo. Mas prefiro não ver para não sentir (muito menos expressar) raiva e, assim, cultivar aqui, neste espaço, um pouquinho de paz.

(Nem que seja só por hoje).

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