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Uma crônica tem muitas vantagens, mas também algumas limitações. Ela é um recorte fictício de um assunto qualquer que o autor considere que merece ser tratado.
Uma crônica tem muitas vantagens, mas também algumas limitações. Ela é um recorte fictício de um assunto qualquer que o autor considere que merece ser tratado.| Foto: Pixabay

No sábado, escrevi uma crônica, não um artigo, sobre o caso da empresa de eletrodomésticos que decidiu abrir um programa de trainee exclusivo para negros. Aquilo que classifiquei como golpe de marketing, e não como ação afirmativa, gerou muita repercussão das redes sociais – e não poderia ser diferente. Estamos em 2020 e a questão racial, que na minha juventude eu julgava já estar ultrapassada, talvez seja hoje o assunto mais importante no mundo Ocidental.

Uma crônica tem muitas vantagens, mas também algumas limitações. Ela é um recorte fictício de um assunto qualquer que o autor considere que merece ser tratado. No caso do meu texto, o recorte, tendo como pano de fundo a ação de marketing da loja de eletrodomésticos, cujo nome não citei só para fazer graça, mas que todos sabem se tratar do Magazine Luiza, é o de um branco pobre da periferia ou do interior que se sente afetado pela política de contratação da empresa.

Não abordei no texto, até porque não caberia, questões legais, bem como discussões aprofundadas sobre o direito ou não de uma empresa, isto é, propriedade privada, de decidir contratar funcionários da etnia a, b ou c. Não que esses assuntos não me interessem. A lei diz claramente que é proibido estabelecer critérios de contratação com base na raça – e eu, que tenho um pezinho no mundo rothbardiano, tendo a considerar que a lei está equivocada. Mas o assunto não coube no texto e eu achei melhor não forçar.

Crônicas são textos muito mais abertos a interpretações do que artigos. Elas pretendem usar da ficção, e de algum humor, para lançar luz sobre um caso imaginário específico, e para isso emprega recursos, como generalizações e até descrições caricatas dos personagens – como o publicitário cercado por brinquedinhos dos anos 1980 – que não caberiam num texto objetivo.

Mas aí é que está: a crônica, ao contrário do artigo, exige do leitor uma postura mais generosa, mais aberta, mais disposta ao diálogo. Bens escassos hoje em dia, reconheço. Ela não pretende encerrar o assunto fazendo uso de gráficos ou estatísticas ou citações, ainda que incidentalmente possa haver uns números ou umas aspas aqui e ali.

A crônica não encerra nem mesmo a opinião do autor. Como já disse, trata-se de um recorte. E, em questões de conflito racial, a imagem é muito maior do que aquilo que expus ao leitor fazendo uso da minha tesoura criativa. Até por isso achei por bem colocar minha crônica no divã e expor, aqui, algumas rebarbas que talvez tenham causado cortes nos dedos frágeis daqueles que folheiam as páginas virtuais.

Motivos pessoais

Confesso que, por motivos pessoais, tenho sérias dificuldades para entender o conflito racial contemporâneo, sobretudo no Brasil. Aí algum militante provavelmente vai dizer: claro, um homem branco, hétero, classe média e privilegiado é incapaz de se colocar no lugar do outro. Quando, na verdade, o exercício de ficção, tanto para quem escreve quanto para quem lê, pressupõe justamente que você viva uma vida que não a sua, que você mergulhe numa realidade que não a sua. Em outras palavras, que você se coloque no lugar do outro.

Nasci numa realidade em que a cor das pessoas simplesmente não importava – e, no que depender de mim, vai continuar não importando. Sendo sincero, o primeiro contato que tive com essa ideia de raça foi muito tardia, com mais de 25 anos, quando, num momento de fragilidade, uma amiga me disse que eu era privilegiado por ter nascido branco. E ela disse isso sem ressentimento algum. Apenas apontando o fato de que eu provavelmente não tive de enfrentar alguns dos obstáculos cotidianos que negros de todos os tons enfrentam.

A crônica que escrevi, porém, não aborda essa questão que, no mais, considero extremamente aborrecida. Há quem considere a cor da pele a coisa mais importante do mundo. Aquilo que o identifica. E quem sou eu para tirar isso de alguém? Outros, contudo, realmente olham o mundo sem ver fenótipos – o que tampouco as tornam pessoas melhores do que as outras. São (somos) apenas pessoas que aprendemos a ver a vida por um prisma diferente.

Golpe de marketing

Sobre a questão específica do Magazine Luiza e sua controversa política de formação de líderes, no sábado mesmo, depois de ter escrito a crônica, li uma carta do CEO da empresa expondo todas as suas boas intenções. O tom é daquele sentimentalismo que Theodore Dalrymple tanto critica, mas que parece ter contaminado para sempre nossa forma de pensar.

Usando argumentos como “criar um mundo mais justo” e outros clichês do gênero, o CEO Frederico Trajano explica a medida. E aqui vai de cada um acreditar ou não nas palavras de alguém que parece se expressar mais como pessoa jurídica, com interesses financeiros e influenciada por acionistas, do que como uma pessoa física com suas convicções intelectuais, morais e espirituais.

Detesto o cinismo e, quando tenho energia para tal, combato o cinismo, próprio e alheio, com todas as forças de que disponho. Mas, neste caso, confesso não ter sentido nenhuma sinceridade por parte do homem que, de certa forma, personifica uma empresa espalhada por todo o Brasil e que emprega 40 mil funcionários. Talvez eu estivesse enganado. Talvez seja um problema de estilo de quem redigiu a carta. Talvez seja o meu cansaço. Talvez seja uma conjunção astral.

Seja lá o que for, a carta de Trajano só reforçou a ideia, que expus na crônica, de que a iniciativa de contratar apenas negros para um programa de trainee não passa de uma estratégia de marketing criada por quem tem um horizonte de curtíssimo prazo e é incapaz de pensar nas consequências não intencionais de seus atos. Em outras palavras, é sinalização da virtude, vaidade disfarçada de caridade, sem qualquer projeto de longo prazo para, de fato, acabar com o racismo e fomentar uma sociedade mais próspera.

E é isso, e não questões jurídicas e nem mesmo o inconcebível dilema moral de criar alguma forma de escrutínio capaz de separar brancos e negros numa sociedade miscigenada como a brasileira, o que mais me incomoda na iniciativa do Magazine Luiza.

Piegas

Minha crônica, cujo texto, reconheço, saiu um ou dois tons mais piegas do que eu pretendia, imaginava um futuro próximo no qual um menino branco e pobre se percebia invejando um amigo negro e pobre porque este amigo terá, graças à quantidade de melanina em sua pele, uma oportunidade que ao branco será vedada. É, repito e trespito, um exercício de imaginação, não um argumento técnico, daqueles com bibliografia e notas de rodapé.

Porque, ao escrever, me preocupo com as consequências individuais (e espirituais) dessas medidas abrangentes, destes golpes de marketing que têm como objetivo um ganho imediato, sem se importar com as mudanças de longo prazo que eles podem ocasionar. Claro que para criar uma situação de “racismo reverso” seria necessário que muitas outras empresas tomassem medidas semelhantes e que os brancos desenvolvessem um ressentimento histórico. Não creio que isso acontecerá. Espero.

Mas aí é que está: será que medidas de justiça, ou melhor, justiçamento social não estão dividindo ainda mais a sociedade? Será que, na sanha por buscar um mundo igualitário, os publicitários e CEOs de grandes empresas, movidos a sentimentalismo e bônus anuais, não estão reforçando a existência de classes distintas de homens? Será que excluir os brancos de um processo seletivo não reforça a ideia abominável de que somos diferentes?

Fico me perguntando, porque imaginar é parte importante do meu processo de criação, o que teria acontecido se a empresa tivesse decidido, em silêncio, contratar apenas trainees negros, sem causar esse rebuliço todo. Afinal, outra coisa que pode causar revolta no branco pobre não é a oportunidade dada ao amigo de pele mais escura que a dele. O que pode causar revolta (e inveja, ressentimento e, em último caso, até retaliação) é ter de engolir a oportunidade perdida por questões alheias a seu mérito e ainda por cima ser chamado de racista, sendo obrigado a pedir desculpas por crimes cometidos ou não por seus ancestrais num contexto histórico bastante diferente.

Balas traçantes

Essas foram as questões que ficaram implícitas na crônica – que é um texto de ficção contaminado por um tiquinho de realidade e que pretende levar o leitor a refletir, sem lhe dar respostas prontas. Em outro momento, talvez um momento menos belicoso, eu talvez não sentisse necessidade de me alongar nesse assunto.

Mas é que ainda vejo balas traçantes cruzando os céus das ideias e, bom, há tempo para tudo, inclusive para reforçar as muralhas argumentativas de quem só quer viver em paz.

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