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Escrever é uma atividade nobre demais para ser praticada por quem, sem ter nada melhor para dizer, diz a primeira e pior coisa que lhe vem à mente.
Escrever é uma atividade nobre demais para ser praticada por quem, sem ter nada melhor para dizer, diz a primeira e pior coisa que lhe vem à mente.| Foto: Rafael Andrade/ Wikipedia

João Paulo Cuenca está numa enrascada. Em junho, num surto criativo típico dos artistas de uma geração sequestrada pela política e pelo narcisismo, o escritor, mais conhecido por seu antibolsonarismo do que por sua literatura, foi ao Twitter para expressar toda a compaixão revolucionária de que é capaz. Para tanto, ele se apropriou da frase do canalha francês Jean Meslier para dizer: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.

Na época, Cuenca foi demitido da Deutsche Welle Brasil, em cujo site mantinha uma coluna. E chorou e chorou. Mas o pior ainda estava por vir. Sentindo-se ultrajados e ameaçados pela paráfrase cuenquiana, vários pastores da Igreja Universal entraram com ações na justiça pedindo reparações. O que é reprovável, mas também é legítimo.

Nenhum juiz em sã consciência condenaria um escritor menor por uma bobagem dita nas redes sociais. Mas, como nem todo juiz tem a consciência sã, o esperado aconteceu. E, numa das ações, Cuenca foi condenado a pagar R$10 mil em indenização a um pastor de São Paulo. O Twitter também foi “condenado” a apagar a conta que Cuenca usava para suas diatribes verbais – o que até agora não aconteceu e duvido que acontecerá.

O escritor está feliz – se é que essa palavra se aplica ao personagem. Afinal, a verborragia dele encontrou eco na estupidez do Judiciário e agora está sendo replicada em todos os cantos. Inclusive aqui.

Pilniak

O caso de Cuenca vs. pastores da Universal me fez lembrar de Boris Pilniak. Um escritor do qual você provavelmente nunca ouviu falar e muito menos leu. Boris Pilniak nasceu Boris Andreievich Vogau e escreveu apenas duas obras, “O Volga Desemboca no Mar Cáspio” e “O Ano Nu”.

Pilniak, dizem as boas línguas, era um cara legal e até talentoso. Como todo escritor digno da alcunha, ele tinha lá seus demônios que tentava exorcizar por meio da literatura. E, numa época e num país (um império!) em que o cotidiano era sinônimo de revolução e política, ele não estava alheio aos meandros do poder e do aparato repressivo soviético.

Era um bom comunista, o tovarish Pilniak. Do tipo que talvez fizesse paráfrases de revolucionários franceses só para agradar seus superiores e seus leitores, também eles cheios de ímpeto revolucionário. Uma pena ter escapado a Pilniak a obrigação de depositar oferendas à burocracia da URSS. Isso lhe custaria a vida.

A vida. E não R$10 mil e uma conta de rede social suprimida. A vida. Tudo porque Pilniak, talvez certo do próprio talento e da compreensão dos tovarishs beletristas, ousou publicar seus livros no exterior sem aprovação prévia da burocracia da União Soviética. E, por isso, só por isso, foi fuzilado com um tiro na nuca.

Do conforto do meu apartamento neste dia nublado, imagino Pilniak exultante ao pôr o ponto final em seu romance “O Ano Nu” (que não li). Imagino-o celebrando a publicação, temendo as críticas, ansiando pela reação dos leitores, antevendo o efeito de suas palavras em quem se atrevesse a encarar sua obra.

Tudo para morrer por falta de uma autorização, um carimbo, um meneio de cabeça de um sacerdote qualquer do Estado. E para ter seu livro e sua biografia soterrados pelo tempo.

Palavras & consequências

O sacrifício de Pilniak transforma os sofrimentos do jovem Cuenca quase numa piada sem graça. E ressalta o ativismo de sofá dos artistas brasileiros que não arriscam absolutamente nada, uma vez que vivem de editais, e que não entenderam ainda que palavras têm consequências. Algumas dessas consequências são justas; outras, injustas. A isso se dá o nome de vida.

Ao expressar seu ódio por Jair Bolsonaro e pelos evangélicos de uma denominação específica, Cuenca atiçou o ódio dos pastores da Igreja Universal que, numa ação aparentemente orquestrada, entraram com processos em diversas praças. Se é uma atitude reprovável, ainda mais vinda de religiosos? Sem dúvida! Mas só mesmo nos delírios autoritários de escritores neocomunistas a vida é reta, justa, inconsequente e esteticamente perfeita.

Pilniak descobriu da pior forma a consequência de seus atos, palavras e omissões. Cuenca vai descobrindo aos poucos que escrever é uma atividade nobre demais para ser praticada por quem, sem ter nada melhor para dizer, diz a primeira e pior coisa que lhe vem à mente.

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