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Imagine o atentado contra Bolsonaro contado por um John Le Carré. Ou o caso recente do camarão contrado por um Proust tupiniquim.
Imagine o atentado contra Bolsonaro contado por um John Le Carré. Ou o caso recente do camarão contrado por um Proust tupiniquim.| Foto: Bigstock

Por mais que eu tente, não consigo deixar de ver a realidade com olhos do ficcionista que quase não sou, mas um dia, ah, um dia serei. Pegue o tenebroso atentado sofrido por Jair Bolsonaro em 2018, por exemplo. Nas mãos de um bom escritor ou roteirista, que história incrível teríamos! E, no entanto, o que prevalece é o apego ao fato sórdido e, convenhamos, insuportavelmente chato.

Se a ascensão de Bolsonaro serviu para alguma coisa foi para derrubar o mito de que estamos cercados por artistas talentosíssimos na literatura, na dramaturgia e na música. Pelo contrário, a cultura brasileira revelou ser o que é desde o início do século XXI: um deserto habitado por beduínos mafiosos que de vez em quando botavam seus camelos para beberem no oásis da Lei Rouanet, dando aos pobres-diabos perdidos nas dunas intransponíveis do esquerdismo panfletário a falsa impressão de que consumiam arte.

São muitas as provas disso. Já falei, por exemplo, da curiosa ausência de um mega hit do verão que falasse da pandemia. Não se lê um livro bom e politicamente desinteressado sobre um personagem como Sergio Moro, antes um inequívoco herói nacional e hoje, para muitos, um traidor. Tampouco se vê um filme ou uma série ficcional que explorasse (sem ceder ao panfletarismo, por favor) os muitos aspectos de uma família cujos membros ocupam assentos na Câmara Municipal, Câmara Federal, Senado Federal e, last but not least, a Presidência.

A explicação não está apenas na escassez de artistas com “a” maiúsculo e gótico, mas também no tom panfletário que parece ter viciado produtores e consumidores de livros, filmes e músicas. Em não havendo espaço para a sutileza e para a exploração honesta da realidade, estamos condenados a nos satisfazermos com o paranoico debate “real” ou por, no máximo, sátiras que geram mais revolta do que reflexão.

Aliás, bom eu ter mencionado as sátiras. Obrigado a mim mesmo. Porque vejo de fato essa tendência à satirização de tudo e, quando se fala em literatura ou cinema “baseados na realidade”, logo aparece alguém para sugerir uma versão satírica ou farsesca dessa mesma realidade. Mas não! Quando penso nas potencialidades da facada o que me vem à mente é uma investigação profunda da alma dos envolvidos num complô desses. Afinal, do idealizador ao perpetrador, todos são seres humanos cujas complexidades deveriam interessar aos artistas. Isto é, se os artistas não estivessem tão ocupados fazendo política panfletária nas redes sociais.

Imagine, por exemplo, a conspiração fictícia da facada contada por um John le Carré ou Graham Greene. Ou mesmo por um Ken Follett ou Stephen King. Imagine a história da família Bolsonaro contada como uma saga à la “O Poderoso Chefão” ou “Succession”. Imagine todas as lacunas existentes nos personagens Moro e Dallagnol preenchidas pela fantasia virtuosa de alguém capaz de fazer o leitor/espectador se perguntar “o que eu faria no lugar dele?”.

O mesmo serve para o caso do camarão não digerido, mal digerido ou indigesto que teria sido a causa da internação às pressas do presidente. Tivéssemos um ambiente realmente propício à exploração artística do caso, ah, quantas possibilidades para além do humor chulo e superficial dos tuítes e memes perversos. Fecho os olhos por um segundo apenas e consigo imaginar Bolsonaro, ou melhor, um personagem inspirado em Bolsonaro (chamemo-lo Enzo Aparecido – que seja!) recordando toda uma vida de erros e acertos enquanto come porções e mais porções de camarão, como se o delicioso crustáceo fosse uma madeleine (não a Lacsko; o bolinho).

Para que isso acontecesse, contudo, seriam necessários não só artistas desmamados de Rouanets e outras leis de incentivo à cultura que, na prática, criaram toda uma geração de artistas que independem do público. Para que isso acontecesse, seria necessário também um público preparado para absorver obras de ficção sem a muleta da interpretação política fácil, apaixonada e necessariamente hostil. Um público tolerante com as arestas que por vezes ficam sobrando (e ferem!) nessa obra de carpintaria que é a literatura.

Na falta dessas coisas, temo é pelo imaginário dos nossos netos. Afinal, as boas obras de ficção que poderiam estar sendo escritas ou encenadas tendem a ser substituídas por obras de ficção ruins, daquelas registradas em livros didáticos ou encenadas nas salas de aula por professores comprometidos com a reescrita da história.

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