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O terraplanismo é uma provocação em defesa do direito inalienável e até primitivo de se questionar os aspectos mais óbvios da realidade.
O terraplanismo é uma provocação em defesa do direito inalienável e até primitivo de se questionar os aspectos mais óbvios da realidade.| Foto: Reprodução/ Wikipedia

Em minhas andanças à procura de um apiário para comprar, conheci Seu Dejair, que está se desfazendo de sua chácara e suas colmeias porque os filhos, um sociólogo, uma jornalista e uma advogada, estão mais interessados em transformar o mundo do que em produzir mel. Todo paramentado e feliz da vida ao ouvir o zumbido das abelhas ao meu redor, conversava com Seu Dejair quando, assim do nada, ele mencionou a teoria da Terra plana.

E imediatamente caiu na gargalhada. Sem ter coisa melhor para dizer, ri também. Gargalhada de doer a barriga, sabe? “Mah vê se pode uma barrrrrrbaridade dessas!”, disse ele com o sotaque carregado, assim que conseguiu recuperar o fôlego. Eu, que de bobo só tenho a cara e o jeito de andar, dei corda para ver o que saía daquele diálogo insólito (“o terraplanismo discutido ao som de abelhas & outros contos”). E foi aí que o Seu Dejair me surpreendeu, dizendo que gostava de pensar nesses absurdos. “Ajuda a exercitar a cabeça, sabia?”.

Sabia, sim, Seu Dejair. Ah, se sabia! A reação do apicultor, em comparação com a reação raivosa de sociólogos, jornalistas e advogados que fazem parte da bolha que habito enquanto não compro meu apiário, foi fundamental para que eu, depois de anos de reflexões esporádicas (não sou tão louco assim) sobre o assunto, entendesse o que leva algumas pessoas a afirmarem que a Terra é plana.

Porque você sabe que, quando um provocador vem com essa história, é um Deus-nos-acuda. Quem leva a teoria a sério a vê como uma grande ameaça civilizacional. Como se fosse assim uma cruzada bárbara para pichar as colunas do Senado romano. Cá entre nós, e não espalha para ninguém: será que quem espuma pela boca e usa a “crença” alheia na Terra plana como argumento tem toda essa certeza sobre a esfericidade (sempre quis escrever isso) do planeta? Ou será que toda essa raiva nasce justamente do medo de a pessoa se ver desmascarada numa coisa tão óbvia?

Para mim, a afirmação de que a Terra é plana não tem absolutamente nada a ver com a planicidade do nosso querido geóide azul. O terraplanismo é apenas uma provocação intelectual que leva às últimas consequências (daí o seu caráter ridículo) a defesa ao direito inalienável e até primitivo de questionar os aspectos mais óbvios da realidade. Logo, a tacada de mestre do terraplanismo está em mostrar o desejo inato de submissão daqueles que não hesitam em repetir que a grama é vermelha se alguém que eles consideram autoridade disser isso.

Em tempos de identitarismo e de “realidade normativa” (aquela que está na Constituição, mas não no cotidiano), o terraplanismo tem a vantagem adicional de revelar toda a hipocrisia de quem, a despeito da “realidade real”, diz que homem pode dar à luz, por exemplo. Não pode. É óbvio que não pode. Todo mundo sabe que não pode. Assim como não pode, é óbvio e todo mundo sabe que a Terra é um belíssimo geóide azul que paira no vazio do Universo dando uma volta ao redor do Sol a cada 365 dias.

Para além de dar nó na cabecinha muito simples dessas pessoas que têm certeza de tudo e que magicamente sempre estão com a razão, o terraplanismo tem lá certa beleza artística – infelizmente ainda inexplorada. Em todas as ocasiões em que o termo “terraplanismo” vem à tona, inclusive e incrivelmente no meio de discussões políticas, penso em Jorge Luis Borges e, por consequência, nas gerações que liam Jorge Luís Borges sabendo que tudo ali é uma deliciosa enganação. Sabe o mito da caverna, de Platão? Pois. É como se Borges colocasse espelhos e tigres e facas naquela caverna, só para ver o que aconteceria.

Penso ainda nos divertidos livros de espionagem que lia na adolescência. Nas mãos de um Le Carré ou Forsyth, a teoria da Terra Plana renderia tramas maravilhosas, cheias de reviravoltas e personagens ambíguos e diálogos espertinhos e finais apoteóricos, talvez com um malvado dr. Flammarion caindo da borda do planeta. Mas isso, claro, só faz sentido num mundo com artistas corajosos e loucos o bastante para criarem explorando o absurdo e com leitores corajosos e loucos o bastante para duvidarem de suas convicções mais sólidas.

Seu Dejair (e eu, você, a torcida do Flamengo e até os terraplanistas!) sabe que a Terra não é plana. Ele também sabe que a grama é verde. Que 2+2=4. E que só mulheres podem dar à luz. Mas, homem livre que se considera e é, Seu Dejair gosta de ficar mascando a ideia de que tudo não passa de uma enganação na qual seus sentidos acreditaram ao longo de 77 anos vividos sob esse Sol que insiste em nascer a leste e se pôr no oeste.

Já desprovido da roupa de apicultor, depois de beber um café com leite perfeito e de me fartar do pão quentinho que a esposa do Seu Dejair assou para a gente, pego um pedacinho de favo, ponho na boca, sugo o mel e fico mascando também a cera e as ideias. Pessoas livres, realmente livres, são aquelas que não temem nenhuma tirania. Nem mesmo a tirania do bom senso. (Em tempo: não fechei negócio).

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