Enquanto isso, na sala do Jardim II B, Renanzinho está aprontando todas enquanto a Tia Justiça não aparece para pegá-lo pela orelha e levá-lo até a diretora. Todos tinham medo da dona Democracia, com seu sotaque inglês, seus óculos na ponta do nariz, coque imponente no alto da cabeça e um olhar que, diziam as outras crianças, era capaz de transformá-lo em estátua num segundo. Menos Renanzinho.
Que ouvia as tias todas falando que “tem que respeitar a tia Democracia, Renanzinho, você não tem vergonha, não? Um meninão desses!” e balançava os ombrinhos como se sofresse um miniataque epilético. “Tó ném aí”, dizia, e as tias nem ousavam rir do sotaque porque Renanzinho era daqueles pirralhos incorrigíveis, filho de coroné e sempre a uma traquinagem de “ser convidado a se retirar da escola”.
Acompanhando pelos amiguinhos Randofinho e Azizinho, Renanzinho atazanava a vida das outras crianças. Outro dia foi o Fabinho. E depois o Nelsinho, aquele menino de olhar meio perdido que dá até pena, sabe? A infeliz vítima de hoje foi o Ernestinho.
Pegaram o lanche dele, deram chá de cueca, amarraram o cadarço de um pé do tênis Conga no outro. Ernestinho ficou lá, choramingando e ameaçando “vou contar pra tia, vou contar pra tia”. Entre uma perversidade infantil e outra do trio, Ernestinho imaginava que Dona Ita de Maraty, sua mãe, o esperava em casa com uma porção de bolinhos de chuva – que ela insistia em chamar de bolinhos chineses, só para fazer graça.
Do outro lado do corredor da Escolinha República Batuta, a turma do Jardim II A estava toda atrás da porta, escutando as arruaças do Renanzinho e seus escudeirinhos. Jairzinho era o líder da turma na rixa histórica contra a sala vizinha. “Ô Dudu”, chamou ele. “Vai lá e fala com eles, talquei?”, mandou Jairzinho, com toda a valentia de seus cinco anos. Mas Dudu tinha medo e preferia ficar quietinho. Além disso, se a tia Justiça o pegasse no corredor, o que ele diria? Dudu foi ficar sentadinho num canto, entretido com sua revistinha de logística.
“A gente tem que fazer alguma coisa aí”, disse Jairzinho para os outros amiguinhos de turma. “Senão o Lulinha volta. Vocês querem que ele volte?”, perguntou. As outras crianças, por reflexo, levaram as mãos aos bolsos, para se certificarem de que suas balas, chicletes e bolas de gude estavam ali. Antes de ser convidado a se retirar da escola, Lulinha levou consigo até o jarro com catotas que o Dudu Cunha acumulava desde que aprendera a pôr o dedo no nariz.
Mas nem Jairzinho nem ninguém do Jardim II A sabia o que fazer. Foi então que se ouviu lá do fundo da sala a voz fraquinha, tímida mesmo, do Serginho. Era um menino estranho, que só se vestia de preto e não falava com ninguém. Quando falava, ninguém entendia direito aquele sotaque de Maringá. Foi por causa do Serginho que o Lulinha acabou expulso da escola. Serginho virou herói da turma, mas caiu em desgraça depois que um aluno de intercâmbio contou para todo mundo que ele fazia xixi na cama. Era mentira, mas sabe como as crianças podem ser cruéis.
Munido de uma coragem brotada dos confins de sua alminha, Serginho abriu a boca para sugerir que Jairzinho fosse até o Jardim II C e… Jairzinho não quis nem escutar o restante.
Mas no Jardim II C as crianças eram tão especiais que nem precisavam da supervisão da tia Justiça. Tanto que quem cuidava delas era uma estagiária do curso de Pedagogia das Faculdades Paulo Freire, a tia Constituição. Só às vezes é que o Gilmarzinho se jogava no chão e fazia birra, mas logo a tia Constituição o colocava no colo e ficava tudo bem. Na turma também estavam o Toffinho, o Xandinho, a Rosinha, a Carminha. O Jardim II C nem sabe, mas está prestes a ganhar um aluno novo, que deve ser amigo do Jairzinho. Mas isso não tem nada a ver com a história.
No momento em que Renanzinho inferniza Ernestinho no Jardim II B e Jairzinho ouve a balbúrdia com medo de sobrar para ele, Carminha está num canto conversando com um dos Luisinhos sobre o boato de que o Marquinho vai ser transferido de escola. “Vô fica tisti”, diz o Ricardinho, que fala assim mesmo e sempre foi um pouco atrasado. Ouvi dizer que ele ainda chupa chupeta.
De repente, as turmas ouvem passos no corredor. É a tia Justiça. No Jardim II C, as crianças não estão nem aí, porque preferem a tia Constituição, que não sabe impor disciplina e no final da aula ainda distribui balas para a meninada. No Jardim II B, Renanzinho diz para todo mundo que puxão de orelha da tia Justiça não dói nadinha. E no Jardim II A Jairzinho se cerca do Paulinho (gênio da matemática, dizem) e do Guto e diz heroicamente: “Daqui eu só saio no colo da dona Democracia!”.
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