• Carregando...
Um homem feliz brinda a todas as coisas não-políticas que compõem nosso cotidiano.
Um homem feliz brinda a todas as coisas não-políticas que compõem nosso cotidiano.| Foto: Paulo Polzonoff Jr.

Peguei no ar a conversa entre dois amigos. Eles falavam da politização das mesas-redondas de futebol. Por coincidência eu, que não sou lá muito fã do esporte, mas adoro uma discussão sobre esse delicioso nada, tinha acabado de desligar a televisão depois de um comentário político no meio do que era para ser uma troca de brincadeiras entre geraldinos e arquibaldos.

A politização de tudo. Esse objetivo marxista de criar uma classe operária ultraesclarecida quanto aos problemas que supostamente a afetam foi finalmente alcançado no século XXI. Me espanta até que não haja algum obelisco celebrando isso em Caracas, Cuba ou Pequim. Da espreguiçada matinal àquele bocejo gostoso antes de dormir, nosso dia se transformou num ato político.

(Ao espírito, nem batatas).

Impossível, por exemplo, se sentar num bar e discutir amigavelmente os efeitos do lockdown na vida cotidiana ou demonstrar esperança, ainda que infundada, no tal de tratamento precoce. Ou até mesmo falar daquela política caricata que há não muito tempo divertia os senhores da Boca Maldita. Não! Tudo virou uma questão de vida ou morte, de genocida para cá, de coronalover para lá, de bolsonarista ou de petista, quando não de isentão. A oposição natural que se expressava à boca pequena, entre cafezinhos, virou militância.

E não adianta mudar de assunto. Aos homens é proibido falar da menina que vem e que passa no doce balanço a caminho do mar. Não há mais poesia no homem que se descobre velho e ultrapassado ao ser esnobado pela Garota de Ipanema. O que há é cultura do estupro, feminicídio em potencial, masculinidade tóxica e autoritarismo fálico. Sofrer a decadência da juventude e da virilidade é uma dor abjeta do patriarcado.

Quando chegam as bebidas, a conversa continua contaminada pela política. Está tudo lá na coca-cola imperialista do Gaúcho, na cerveja progressista-vegana do Bola Sete, no uísque opressor do Cuíca, na caipiroska de maracujá do Rosinha. Os petiscos não ficam atrás. Sabe por que hoje comemos rã? Por causa da fome. Testículo de touro ao molho? Mesma coisa. E se você não votar em X ou votar em Y, daqui a pouco nosso petisco será grilo assado. Ou carne de cachorro.

Politizaram até aquelas estripulias do passado que a gente contava sem qualquer medo de passar ridículo. Os amores juvenis viraram assédio. As fases de rebeldia passageira e exagerada – sempre exagerada – viraram revolução potencialmente jacobina . Os fracassos que pareciam determinantes, mas que na hora renderam boas gargalhadas, viraram consequência da opressão sistêmica. Tudo aquilo que a gente fazia com a esperança de existir na memória de amigos dos quais não lembramos nem o nome hoje virou motivo de análise política.

E não adianta tentar falar de cinema ou literatura. Tá maluco?! Como é possível você gostar daquele livro ou daquele filme que “defende” valores francamente conservadores ou progressistas ou liberais ou comunistas ou cristãos ou ateus? Você não tem o direito de gostar do que me incomoda e o seu riso ou lágrima o tornam cúmplice de todas as tragédias do mundo, pretéritas, presentes e futuras.

Também a música o define para além do seu mau gosto. Só ouve Guns ‘n’ Roses quem é supremacista branco e só ouve Stevie Wonder quem é antirracista. Se prefere Bach a funk eu já sei que é mínion. Se prefere o contrário eu já sei que está muito preocupado com a situação das comunidades e que ao acordar grita “Marielle presente!”.

E se finalmente exaurido pelo silêncio pesaroso – único “assunto” que parece apaziguar os amigos antes cheios de alegrias, esperanças e histórias para contar – você decidir pedir a conta e viver algo remotamente semelhante à liberdade na solidão do lar… Não se apresse!

Pois haverá sempre um misesiano a apontar os impostos abusivos do Estado totalitário, impostos que roubam o espírito empreendedor do homem que busca apenas sua autossatisfação, blá, blá, blá. Ou um unicampense a querer taxar a gorjeta do garçom para financiar a indústria nacional de canudinhos de papel.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]