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Até aqui, foram quatro meses de muitas mudanças causadas pela pandemia. Como você reagiu a elas? E por que isso é importante.
Até aqui, foram quatro meses de muitas mudanças causadas pela pandemia. Como você reagiu a elas? E por que isso é importante.| Foto: Reprodução

À medida que o pânico em torno da pandemia de Covid-19 lentamente se dissipa, os mais apressadinhos começam a refletir não sobre quem serão depois que isso tudo tiver passado (em agosto?), e sim sobre quem foram em meio à profusão de decretos inúteis, informações desencontradas, medo e intermináveis gráficos na capa dos jornais.

Com sorte, os que fizeram pacto com a mentira, com o alarmismo, com o exagero e até com o cientificismo haverão de fazer as pazes com a verdade. Me refiro, aqui, a pessoas e empresas que viram na pandemia uma oportunidade de exercer seu poder “transformador da realidade” em detrimento de seu poder de observar criticamente a realidade. E pessoas físicas e jurídicas que expressaram até alguma felicidade pelo surgimento de algo tão avassalador e trágico.

Isso sem falar nos que usaram várias táticas sentimentais para recriminar emocional e socialmente aqueles que passaram (e estão passando) esses meses todos tentando manter a cabeça fora do lamaçal em que se transformou o debate sanitário no mundo. Aqueles que, munidos de convicções que muitas vezes não são deste mundo, foram obrigados a testemunhar seus semelhantes se curvarem à arrogância do pequeno poder.

Aqui proponho que você se faça quatro perguntas simples, para as quais não existe uma resposta certa. Afinal de contas, somos todos humanos, sujeitos ao erro e à tentação, e às vezes também estamos cansados ou ocupados demais para transformamos nossas vidas em campos de batalha filosóficos.

Sejamos, pois, generosos com nós mesmos.

Defendi a liberdade?

O encontro com a própria consciência é algo que não se ordena, apenas se sugere. E ele acontece num silêncio semelhante àquele do enigma zen: qual o som de uma árvore caindo na floresta, sem que haja ninguém para ouvir? Haverá sempre os que passarão incólumes por esse tipo de reflexão – porque jamais duvidam de si.

Os demais, aqueles que antes de dormir ainda têm forças para refletir sobre o dia, já se deparam com algumas perguntas incômodas, mas necessárias. A primeira, mas não obrigatoriamente a mais importante delas é: eu defendi a liberdade? Ou tentei fazer a minha visão de mundo prevalecer sobre as demais?

Como o vírus é uma partícula sobre a qual pairam muitas incertezas (a ciência não sabe direito nem se ela pode ser considerada vida) e cuja consequência extrema é nada menos do que a morte, é normal que muitas pessoas vissem suas convicções abaladas. Adicione-se a este caldo um tiquinho de tensão política e pronto! O castelinho de areia da liberdade (própria e alheia) desmorona.

A ideia aqui, porém, não é apontar o dedo para os muitos malfeitos cometidos em nome do “achatamento da curva” ou qual tenha sido o clichê “científico” da vez. A ideia é se perguntar se a liberdade foi um valor a ser individualmente considerado em sua conduta diária nos últimos quatro meses.

Aprendi a morrer?

Foi Montaigne quem escreveu: “Ele que aprendeu a morrer desaprendeu a ser escravo. Saber morrer nos liberta de toda a sujeição e de todos os limites”. Mais do que uma frase bonitinha para figurar em agenda de adolescente, a reflexão de Montaigne nos traz ao cotidiano quase paranoico da pandemia de Covid-19, quando todos, em algum momento, se perguntaram “o que vai acontecer comigo?”

É uma pergunta ancestral que sempre foi respondida pela fé. Numa era secularizada como a nossa, porém, o consolo da fé é um bem escasso. Assim, é normal que se recorra ao intelecto. O que muita gente deve ter percebido nesta pandemia é que o cérebro pode até ser o órgão mais maravilhoso do Universo (na opinião do próprio cérebro, claro), mas ele jamais encontrará, por si só, resposta para o grande dilema da morte.

Aprender a morrer, portanto, é uma expressão equivocada. Ninguém aprende a morrer como aprende a Fórmula de Bhaskara ou os afluentes do rio Amazonas. O aprendizado, neste caso, é bem mais sutil e, ouso dizer, impossível de ser transmitido às gerações futuras. Montaigne chegou perto. Tolstói, com seu A Morte de Ivan Ilitch, tentou e também fracassou.

O coronavírus, ou melhor, todas as infinitas celeumas que cercaram a pandemia também tentaram nos ensinar a morrer. Mas talvez estivéssemos distraídos demais com máscaras e lockdowns para aprendermos essa que é a lição mais difícil de todas.

Entendi a transitoriedade de tudo?

Aqueles que, como eu, nasceram no fim da década de 1970, estavam acostumados a certo nível de segurança e abundância. Em outras palavras, minha geração sempre teve tudo à mão. Isso não significa que, individualmente, não enfrentamos todos adversidades, inseguranças e escassezes (plural esdrúxulo, não?) de vários tipos. Significa que, no geral, temos muito mais condições intelectuais, técnicas e até emocionais para lidar com os problemas comuns à Humanidade. Em comparação com nossos antepassados, somos todos, independentemente de credo, raça ou nacionalidade, extremamente privilegiados.

E, no entanto, não à toa a ansiedade é um dos maiores males a afligir minha geração. Porque de alguma forma sempre soubemos que o mundo de abundância que nos foi legado podia muito bem desaparecer de uma hora para outra. Muitas foram as ameaças: a Guerra Fria, o Bug do Milênio, o 11 de Setembro, ISIS, aquecimento global. Nenhuma dessas coisas, contudo, teve a força destruidora e transformadora da pandemia de Covid-19.

Não estou querendo dizer com isso que cedi à ideia de purificação da Humanidade do fetiche da peste. Longe de mim! Estou querendo dizer que o coronavírus, com sua supressão da liberdade, com a onda de falências e demissões, com sua promessa (felizmente não confirmada) de caos e saques e fome, foi o que mais perto chegou de mostrar que tudo o que temos – meu Deus, até aquele chopezinho na sexta à tarde, os conflituosos jantares em família, as discussões de trabalho – pode ser tirado de nós de uma hora para outra.

Fui grato?

O que nos traz à faceta mais interessante dessa tragédia que se aproxima de consumir um milhão de pessoas, sem falar nas multidões de sobreviventes desesperados que terão de encontrar forças para reconstruir a vida em meio à ruína econômica de países inteiros: a gratidão.

Porque sobrevivemos. A despeito do que nos dizem algumas pessoas que veem o mundo como um lugar insuportável, sombrio e ameaçador, controlado por pessoas inerentemente más. E a despeito de medidas tão autoritárias quanto risíveis, de intermináveis debates farmacológicos e de previsões apocalípticas. Sobrevivemos. Até aqui. Não é pouca coisa.

As gôndolas dos mercados estão cheias. Há combustível nas bombas de gasolina. As bibliotecas continuam de pé. Da torneira jorra água potável. Temos à nossa disposição, o tempo todo, tanta informação e diversão que até cansa. Ao toque de um botão, podemos ver o rosto e conversar com aqueles aos quais a pandemia impôs o isolamento. E à noite temos um teto a nos proteger dos elementos.

Esses são os fatos. Eles estão envoltos, reconheço, numa série de sentimentos não necessariamente nobres. No medo que beira a covardia. Na já citada ansiedade. Na arrogância. No pessimismo. Mas também na generosidade. Na fé. Na virtude discreta. Na esperança. No milagre que é termos sobrevivido para agora podermos optar conscientemente pela gratidão.

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