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É admirável: caçamos palavras alheias como nossos antepassados talvez caçassem mamutes.
É admirável: caçamos palavras alheias como nossos antepassados talvez caçassem mamutes.| Foto: Pixabay

Outro dia, mexendo em alguns textos antigos que pretendia reunir em alguma edição mambembe, encontrei um que falava na ironia como o mais palpável dos milagres. E não é?! Imagine que o autor escreve algo querendo dizer o contrário e o leitor, sem qualquer sinal gráfico ou piscadinha ou aviso sonoro, simplesmente compreende. Ironia é isso! Se milagre eu não sei, mas é, no mínimo, o mais próximo que um dia chegaremos da telepatia.

O porquê de escrevermos, de deixarmos marcada nossa impressão do mundo, é tema velho, quase caduco e explorado com muito mais competência por pessoas com verbetes enormes na Wikipedia. A questão que me parece muito mais interessante e difícil de ser respondida hoje é por que insistimos em ler, em absorver as impressões alheias de mundo, em misturá-las às nossas próprias e, assim, dar origem a algo completamente novo que, por falta de palavra melhor, chamarei de “raciocínio”.

Por que, afinal, assinamos um jornal e lemos um texto autoral como este? Por que acompanhamos certas pessoas no Twitter ou Facebook e distribuímos coraçõezinhos? E, para os mais velhos dentre nós que ainda consomem aquele objeto arcaico chamado “livro”, por que escolhemos este e não aquele autor e por que o abandonamos na página 20 ou marcamos trechos com a caneta (!) ou rimos de nós para nós mesmos, como que numa silenciosa comunhão intelectual?

Há, no meio dessa equação toda, o aleatório e o acaso. E também o erro. Quantas vezes me peguei lendo alguma coisa absolutamente incrível porque cliquei no link errado? E, da mesma forma, quantas vezes me deparei com uma manifestação deplorável do espírito humano por que alguém me recomendou este ou aquele autor?

Mas há também iniciativa, vontade e sobretudo generosidade. É admirável: caçamos palavras alheias como nossos antepassados talvez caçassem mamutes. A gente gosta de informação, gosta de entender a informação e gosta de saber como os outros entenderam a informação. A gente gosta de concordar e discordar. A gente gosta de travar uma batalha silenciosa com o autor – e principalmente da sensação de sairmos sempre vitoriosos, seja lá qual for o raciocínio que leve ao ponto final.

Escrever é arte. Todo mundo sabe disso – até quem escreve mal. Mas ler é tão arte quanto. Por algum motivo, contudo, na escola damos mais valor à composição (redação) do que à decomposição (leitura). O que talvez explique tantos insultos nas redes sociais e caixas de comentários. Afinal, partimos sempre do pressuposto de que o texto que nos desagrada é mal escrito, quando é muito mais fácil ler algo apressada e equivocadamente, escorregar num advérbio, bater a cabeça e sofrer uma concussão.

Por sorte, há autores como Mortimer Adler e seu “Como Ler um Livro” (esgotado) para corrigir essa deficiência de leitura. Porque ler exige domínio da técnica e... talento (além de pelo menos uma colher de sopa de generosidade). A técnica se manifesta na decodificação dos sinais gráficos. Fácil, não? Já o talento é exigido à medida que o texto se torna mais complexo, com todos aqueles lindos penduricalhos capazes de transformar um insípido bloco de mármore numa escultura, como metáforas, ironias, metalinguagem e outras gracinhas do gênero.

Claro que não é uma relação das mais pacíficas, essa envolvendo texto e leitor. Porque muitas vezes cansamos de caçar mamutes. Às vezes você está aí na sua cama. Já é tarde da noite. Você teve um dia ruim. Péssimo mesmo. Ao seu lado, sua esposa ronca baixinho. Você está com o celular à mão e, na esperança de que o sono chegue logo, começa a vasculhar a Internet em busca de algo que o mantenha acordado. O que não faz sentido algum – mas que se dane! E daí você clica aqui e acolá e, quando dá por si, está lendo um texto que, escrito com a melhor das intenções, talvez tenha vírgulas demais ou uma referência que você considera pedante ou ainda fala justamente do assunto que está tirando o seu sono.

É quando ocorre a ruptura. As palavras que o autor pensou não fazem mais sentido. Ou fazem um sentido bem diferente do que ele pretendia ao começar a escrever. O milagre telepático da ironia se perde. Cada vírgula soa como uma ofensa. Neste instante, talvez agora mesmo entre mim e você, um abismo se abre.

No dia seguinte, porém, o Sol surge no horizonte, juntamente com mais uma tonelada de textos. E, com eles, infinitas possibilidades de se ver manifestados o milagre da ironia e a comunhão entre seu talento de leitor e o talento (ou esforço) de quem escreve.

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