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Ford via a vida como uma linha de produção. Assim, ele criou uma experiência utópica em plena Amazônia. O Brasil subsidiou o projeto fracassado, claro.
Ford via a vida como uma linha de produção. Assim, ele criou uma experiência utópica em plena Amazônia. O Brasil subsidiou o projeto fracassado, claro.| Foto: Reprodução/ Capa do livro Fordlândia (detalhe)

Henry Ford, sempre citado em palestras motivacionais e almanaques como o visionário inventor da linha de produção, um homem à frente de seu tempo e outros clichês caros ao gênero, não era exatamente uma boa pessoa. Em que pese o fato de ele ser fruto de seu tempo e muito bem-sucedido nos negócios, Ford nutria certa ojeriza por judeus. E, ao ouvir a palavra eugenia, seus olhinhos brilhavam.

Há que se compreender Ford. Para os padrões de hoje, por exemplo, ele seria um Bill Gates ou Jack Dorsey, sentado numa montanha de dinheiro de fazer inveja ao Tio Patinhas e capaz de realizar praticamente todos os seus sonhos - inclusive os intangíveis. Gates e Dorsey, filhos de seu tempo, usam a fortuna para promover uma pauta progressista que faz de tudo para esconder suas origens eugenistas. Ford tinha menos tato, por assim dizer. Até porque, no começo do século XX, a eugenia era vista por muitos como uma solução moralmente aceitável para problemas como a fome e a violência.

Pois foi munido desse espírito empreendedor - que incidentalmente se achava no direito de “melhorar a Humanidade” (outro ponto de contato entre Ford e os bilionários contemporâneos) - que Ford teve uma ideia brilhante: construir, no meio da Amazônia, uma cidade planejada e autossuficiente, um “pedacinho da América” que mostraria ao mundo que o conceito da “linha de produção” se aplica a todos os aspectos da vida.

Se deu errado? Muito.

Utopia x realidade

O pretexto era conseguir tornar a Ford autossuficiente em borracha e levar riqueza e prosperidade a uma região hoje condenada à pobreza eterna pelos ecoxiitas. Foi com essa lábia que Henry Ford, em 1925, negociou com o governo brasileiro. Das negociações ele saiu com uma área de 10 mil km2 no Pará, perto de Aveiro. Era um dos primeiros subsídios que a empresa de Ford receberia do Brasil nos próximos 100 anos.

Teve início, então, a construção da cidade. A ideia era criar um paraíso tropical à moda do Meio-Oeste norte-americano. Ou seja, reproduzir em pleno Pará da década de 1920 uma daquelas tantas cidadezinhas outrora prósperas de Indiana ou Illinois, com sua piscina pública, hotelzinho, biblioteca e hospital. O projeto incluía até um campo de golfe – porque ninguém é de ferro. Para tanto, tudo foi acumulado nos Estados Unidos (até as maçanetas das portas!) e enviado para o Brasil em dois navios.

Como era de se prever, os problemas começaram antes mesmo da construção da cidade, quando os engenheiros perceberam que não havia estradas ligando a futura e perfeita Fordlândia ao restante imperfeito da civilização. Ford tampouco previu a dificuldade de encontrar pessoas que servissem como cobaias na experiência de provar ao mundo a infinita capacidade de planejamento do ser humano e, se desse tempo, a superioridade do homem norte-americano sobre os demais.

Em 1928, a cidade foi oficialmente fundada. Sem funcionários utópicos o bastante, Ford teve de contratar mão de obra local. Os nativos, contudo, tinham de se adequar às normas de conduta rígidas da empresa. No delírio eugenista de Ford, não havia espaço para álcool e tabaco. O que, você há de imaginar, não impediu os funcionários de contrabandearem cachaça e fumo das redondezas. Até o exército teve que se envolver na história depois que os brasileiros se revoltaram contra as condições de trabalho em Fordlândia.

Ano após ano, a empreitada mostrava que um mundo planejado era um ideal inalcançável. Há variáveis e acasos demais. As pessoas, por exemplo, podem se revoltar por serem obrigadas a comer hambúrgueres – o que de fato aconteceu. O solo da exuberante floresta pode se revelar contraintuitivamente pobre – o que de fato aconteceu. E os mosquitos talvez não estejam nem aí para o progresso e só querem mesmo é se divertir e transmitir febre amarela para os seres humanos – o que de fato aconteceu.

Admirável Mundo Novo

A brincadeira durou apenas seis anos. Sem o estardalhaço de hoje em dia, a Ford simplesmente abandonou o projeto e foi cuidar de sua vida. As plantações de seringueiras, justificativa econômica para a experiência, foram realocadas. Em 1945, com a invenção da borracha sintética, deixou de fazer sentido produzir borracha na Amazônia e a Ford vendeu suas áreas na região para o generoso governo brasileiro.

Mas nem tudo é prejuízo nessa história. Graças à Fordlândia, por exemplo, Aldous Huxley encontrou inspiração para a Londres de seu “Admirável Mundo Novo” – uma espécie de “1984” sem um departamento de relações públicas tão bom. E Greg Gandin escreveu Fordlândia, livro imperdível sobre o assunto que, não posso esquecer, deve virar série documental nas mãos de ninguém menos que Werner Herzog.

Não que Fordlândia tenha servido para ensinar muita coisa a Henry Ford. Não à toa, em 1936, logo depois de abandonar a cidade utópica, ele, que nunca pôs os pés no Pará, fundou a hoje bilionária Ford Foundation, cuja pauta progressista não é segredo para ninguém.


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