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Num mundo onde opiniões estapafúrdias como a de Thiagson (foto) são superabundantes, por que elas insistem em chamar nossa já escassa atenção?
Num mundo onde opiniões estapafúrdias como a de Thiagson (foto) são superabundantes, por que elas insistem em chamar nossa já escassa atenção?| Foto: Reprodução/ Twitter

A notícia veio de um site que se orgulha de ser “a visão popular do Brasil e do mundo”. Segundo o pesquisador Thiago Santos, o funk “Bum Bum Tam Tam", já explorado por mim aqui, seria uma obra musical mais complexa do que as músicas de Bach. Quem diz isso é o professor de piano e mestre em música (nessa ordem), Thiago Santos, doravante chamando aqui de Thiagson.

Thiagson, o mestre, aparece na matéria. Com a cara mais séria do mundo, ele posa exibindo cabelos do tempo da brilhantina e bigodes curvilíneos como os de Salvador Dalí. Ao fundo, vê-se uma favela – o que, julgo eu numa análise semiótica apressada, serve para conferir “autoridade popular” ao discurso. Graças à legenda da foto, ficamos sabendo que Thiagson “defende o funk de ataques e fala sobre a sofisticação do ritmo”.

Até ontem, terça-feira (9), eu já tinha recebido uns 20 prints do título e ao menos 5 links para a opinião impopular e estapafúrdia de Thiagson. Todos de amigos que realmente não estão nem aí para minha saúde mental, claro. Uns indignados com as palavras do nosso Thiagson. Outros rindo em vários níveis de kkkk. Nenhum indiferente a uma opinião que, há dez anos, seria motivo de zombaria até em mesa de bar, quanto mais na academia ou na imprensa. E pode trazer outra bem gelada, garçom.

O que me levou ao título deste texto. Num mundo onde opiniões estapafúrdias (entre as quais modestamente incluo muitas das minhas) são superabundantes, por que elas insistem em chamar nossa já escassa atenção? Em causar revolta, indignação, raiva? Por que, ao lermos uma bobagem como essa, nos sentimos impelidos a encaminhar a mensagem com emoji explodindo de raiva, vomitando ou com os dizeres plmdd?

O fim do maravilhamento

Um fenômeno paralelo, mas relacionado a esse fascínio que as opiniões estapafúrdias nos causam, é a extinção dos “fatos maravilhosos”. Aqueles que antigamente nos chegavam graças a revistas como a National Geographic ou, se déssemos sorte, um episódio do Globo Repórter. E que nos deixavam de queixo caído (com o perdão pelo clichê). Não pode ser verdade, dizíamos uns para os outros, exibindo fotos ou de olhos grudadíssimos no televisor. Mas era.

E corríamos para o telefone, aquele de gancho mesmo, a fim de compartilharmos com alguém (amigo, primo, avó) o nosso maravilhamento. As criaturas dos abismos submarinos, com aquela lanterninha na testa e os dentes demoníacos. A vida microscópica, mas insistente, nas fontes termais cheias de enxofre. As dimensões monumentais de uma baleia azul. A estrela supostamente feita de diamante. Etc. E tal.

Hoje, fatos como esses passam quase sempre incólumes por nossas redes sociais. Outro dia mesmo, cocomitantemente (revisor, não é erro; é trocadilho) com a opinião do Thiagson, circulou a notícia de que pesquisadores finalmente entenderam porque o wombat, um marsupial da Tasmânia que os portugueses chamam de fascólomo, faz cocô em forma de cubos. Por alguns segundos, não mais do que isso, me lembrei da sensação que era descobrir, quando criança, os aspectos mais irreais desse mundão de meu Deus.

A sensação de maravilhamento, contudo, não se abate mais sobre ninguém. Tudo é dado como certo. Como se a ciência tivesse descoberto absolutamente tudo o que havia para se descobrir no mundo e para além dele, no Universo. Como se a natureza não tivesse mais nenhum encantamento nem ocasião para nos surpreender. Blá blá blá, evolução das espécies, cocô em cubos – é mais ou menos assim que as pessoas raciocinam diante de um fato malcheiroso, mas com um quê de poético.

Resta-nos, portanto, repercutir opiniões como a de Thiagson.

Professor, mestre, futuro doutor

Fui esmiuçar a “notícia” com a opinião de Thiagson. Aquele que, não bastasse ser professor e mestre, ainda é doutorando na USP. Note como os títulos acadêmicos são exibidos como prova inconteste da inteligência do sujeito – que, sou obrigado a reconhecer, ao menos não banca o intelequitual posando diante de estante cheia de livros virgens ao toque humano.

É a inteligência com carimbo do MEC que já explorei em alguns textos. Acredita nela quem quer. É também a tirania dos especialistas de que fala Martim Vasques da Cunha. É o famoso e antigo golpe da carteirada, algo que me envergonha desde que passei por entre as colunas coríntias da UFPR, mas de que os jovenzinhos parecem sentir o maior orgulho.

“O Bum Bum Tam Tam é mais complexo por várias questões”, diz ele, ou melhor, ressalta ele logo no começo da matéria, que é bastante hábil em criar uma espécie de suspense para o leitor que não se contentar com o título. Depois de uns volteios à la João Kléber, eis que chego ao cerne da questão. Para Thiagson, a complexidade de Bum Bum Tam Tam estaria na transposição de certos aspectos da música para a partitura. “Fióti colocou umas notas [na partitura] que o Bach jamais colocaria”, arremata o professor, o mestre, o futuro doutor.

Que, por seus títulos acadêmicos, talvez se considere melhor do que o sem-diploma Bach.

Lei Natural do discurso

É fácil refutar Thiagson. E, por incrível que pareça, não precisa nem de diploma. É algo instintivo. Sabemos, simplesmente sabemos, que não há como a pancada do funk ser mais complexa do que Bach. Porque simplesmente não é. Não importa o que digam o carimbo do MEC e o ouvido politicamente corrompido de Thiagson.

Sobre a transposição de timbres complexos para a partitura, por exemplo, pode-se dizer que também é difícil transpor com precisão o discurso de um bonobo para o texto. O que não torna os grunhidos, transformados em onomatopeias, peças dignas de Shakespeare.

Entorpecido de autoimportância, ao longo de uma tediosa entrevista na qual critica a “universidade colonizada” Thiagson tem a oportunidade de aprofundar seus argumentos. Mas ele acaba se afundando num emaranhado de raciocínios apressados, feitos para "chocar" o leitor desatento e já com os nervos eriçados. Ele diz, por exemplo, que o funk é mais complexo do que a música erudita por causa da eletricidade e da tecnologia. O que é o mesmo que dizer que J. K. Rowling é melhor do que Shakespeare porque ela escreve usando um processador de texto, e não pena de ganso.

Aí está, talvez, uma explicação simples para o fascínio que as opiniões estúpidas despertam na gente. Elas agridem uma espécie de Lei Natural do discurso. Algo que não está nos livros que porventura Thiagson possa talvez ter dado uma passada de olhos na faculdade e que C. S. Lewis se esforça para definir em seu obrigatório Cristianismo Puro e Simples. Ao optar pelo discurso ressentido em forma de controvérsia vazia, é como se Thiagson agredisse algo em que acreditamos sem nem precisar pensar: há o certo e o errado.

Adicione-se a isso o fato de associarmos Bach ao enlevo, à contemplação, à Beleza com b maiúsculo e todo trabalhado no gótico, e o funk aos subterrâneos fétidos da alma contemporânea. Pronto. A mágica está feita. Thiagson sente que suas palavras têm o poder de destruir as bases musicais da civilização e até instaurar o ruído do funk como padrão de beleza (com b minúsculo mesmo). E nós sentimos que precisamos espalhar a "má nova" a todos os nossos contatos do WhatsApp. Porque, se o mundo um dia acabar soterrado nas opiniões escalafobéticas de um Thiagson, bom, eu quero que ao menos meus amigos saibam o que está acontecendo.

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