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Gabrielli Mendes da Silva: Ela estava numa “festa clandestina”. Ao som de funk. Alguém denunciou a “aglomeração ilegal”. E agora ela está morta.
Gabrielli Mendes da Silva: Ela estava numa “festa clandestina”. Ao som de funk. Alguém denunciou a “aglomeração ilegal”. E agora ela está morta.| Foto: Reprodução/ Twitter

Eu não gosto de funk. Você provavelmente não gosta de funk. Vou além. Para mim, a simples ideia de um baile funk é uma antevisão do inferno. Não só pela “música”, mas por tudo o que esse tipo de festa representa em termos culturais e morais. Em privado, uso até palavras como “aberração” para descrever o funk e tudo o que o cerca.

Começo o texto com essa ressalva porque vou falar do assassinato de Gabrielli Mendes da Silva, de 19 anos. Ela morreu ao levar um tiro no peito durante uma ação da Guarda Municipal de Rio Claro, no interior de São Paulo, para dispersar uma aglomeração. E eu sei que a reação a esse tipo de notícia não costuma ser das mais caridosas. Afinal, fazemos certa imagem das pessoas que frequentam bailes funk – e não é uma imagem das mais lisonjeiras.

Mas daí a desejar, celebrar ou dar de ombros para a morte de uma pessoa...

Independentemente da ojeriza que a música ou o estilo de vida da vítima possam despertar, contudo, é preciso se ater ao fato. Uma menina de 19 anos foi morta com um tiro no peito disparado por um guarda municipal durante uma ação para dispersar uma aglomeração numa “festa clandestina”. Difícil expressar, aqui, a monstruosidade disso.

E, no entanto, essa monstruosidade conta com a chancela não só do poder público como também de parte da imprensa e até de cidadãos “esclarecidos” que juram estar agindo no melhor interesse da população “ignorante”. Afinal, vivemos uma pandemia, uma peste, um necrogoverno, uma catástrofe “sem precedentes” (essa geração acha que tudo é sem precedentes) na qual vale qualquer coisa, até tirar a vida de uma adolescente, para... Para quê mesmo? Evitar contágio? Achatar a curva? Poupar recursos do SUS? Qual a justificativa da vez?

Banalização da vida

A morte de Gabrielli seria apenas mais uma morte entre tantas num país que parece ter aprendido a conviver com a violência cotidiana da pior forma possível: banalizando a vida. Curioso perceber como inventamos qualquer tipo de desculpa para justificar o injustificável. Vidas são tiradas pelos motivos mais prosaicos. Neste caso muito concreto, a justificativa foi aquilo que já chamei aqui de “fascismo sanitário”: a ideia, nascida da ignorância, de que é possível acabar com uma pandemia dispersando aglomerações.

Os detalhes da história, contados com a frieza cínica e autoindulgente do jornalismo, compõem uma imagem na qual se misturam o despreparo do guarda municipal, que pretendia dar tiros com bala de borracha, mas se embananou todo com a arma, e o dedurismo de alguém que, talvez incomodado com o barulho, talvez muito preocupado com as estatísticas da Covid-19, ligou para a polícia da cidade de 180 mil habitantes para denunciar a “festa clandestina”.

“Ah, mas os guardas municipais foram recebidos com pedradas e garrafadas. E aqueles marginaizinhos lá do baile funk estavam colocando a saúde das pessoas em risco. Sem falar nas drogas, na promiscuidade...”, tentará argumentar alguém, provavelmente sem perceber a desproporção entre a repulsiva diversão juvenil e o tiro que matou Gabrielli. O que é compreensível. Afinal, estamos vivendo assim já há anos, com os nervos exaltados, sempre no limite, ansiosos diante da gota que fará o copo transbordar.

Que ameaça real pode representar uma menina de 19 anos a um marmanjo armado a ponto de este mesmo marmanjo eliminá-la com um tiro no peito? E hoje a vítima foi uma pessoa que vemos com desconfiança, num ambiente não lá dos mais aprazíveis, ouvindo aquela música que, sinceramente, nem sei como as pessoas conseguem. Mas quem garante que amanhã a tragédia não se repetirá depois que um cidadão obediente ao fascismo sanitário denunciar uma “aglomeração ilegal” diante de um altar ou uma “festa clandestina” de aniversário, com decoração de Toy Story ou coisa assim?

Cumprindo ordens

O guarda municipal envolvido na tragédia que tirou a vida da filha de alguém foi preso e responderá a um processo por homicídio culposo, sem intenção de matar. Afinal, tudo não passou de um acidente e, no mais, ele estava obedecendo ordens e muito provavelmente fazendo cumprir mais um decreto redigido por um burocrata entediado da prefeitura de Rio Claro.

Agora ele responderá na Justiça. É improvável que seja condenado. E o tempo passará e a pandemia um dia terminará. E o guarda municipal, provavelmente de volta às ruas, voltará a impor a lei e a ordem da vez. Talvez até lá se proíba o cigarro ao ar livre. Será que, nesse caso, o guardinha também alegará estar cumprindo ordens e sacará sua arma para matar o fumante delinquente?

Enquanto isso, Gabrielli Mendes da Silva, 19 anos, morta com um tiro no peito, não virará mártir de nada. Não haverá protestos mundiais em torno de sua vida precocemente interrompida. Afinal, ninguém em sã consciência gosta de funk e, pior, quem se aglomera nesse tipo de ambiente em tempos de coronavírus bom sujeito não é.

Uma vez enterrada, ela provavelmente será esquecida, apenas mais uma vítima colateral dessa utopia asséptica na qual se transformou o enfrentamento da Covid-19.

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