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A aversão dos intelectuais públicos brasileiros ao debate franco e sadio os prejudica tanto no pessoal quanto no profissional, como diria Faustão.
A aversão dos intelectuais públicos brasileiros ao debate franco e sadio os prejudica tanto no pessoal quanto no profissional, como diria Faustão.| Foto: Reprodução/ Twitter

Na minha ingenuidade semipatológica, acordei hoje todo animado para ler a tréplica de Luiz Felipe Pondé a minha colega Bruna Frascolla. Semana passada, depois de Pondé declarar voto num Lula “conservador e inteligente”, a filósofa baiana que tão bem colore as páginas da Gazeta do Povo questionou a lógica radicalmente antibolsonarista do uspiano, que usa sua condição de prestigiado intelectual público para validar um desejo que se passa por ideia: a de que o PT teria lidado melhor com a pandemia do que o genocida Jair Bolsonaro.

Ainda descabelado e em jejum, fui correndo até a banca de jornal mais próxima. Mas aí lembrei que somos um jornal online. Saquei o celular do bolso e foi ali mesmo, diante das revistas de palavras-cruzadas, que li o texto do Pondé falando de négationnisme chic. Sobre as bobagens que ele mesmo disse na semana anterior, nem uma virgulazinha. Sobre as incoerências apontadas pela colega filósofa, nada.

Como bom intelectual público brasileiro, Pondé passa pelo mundo das ideias sem olhar para os lados, ouvindo mentalmente uma música enfadonha que diz “eu sou gênio/ ninguém é capaz de me contestar” e, como um camelô hippie de nariz empinado, vendendo frases de epóxi e conceitos de garrafa pet. Há quem compre.

Tanto no pessoal quanto no profissional

Estou aqui mencionando o Pondé por causa de um caso específico, mas ele está longe de ser o único intelectual brasileiro avesso ao debate franco de ideias. Há toda uma escola brasileira de retórica informalmente dedicada à promoção do silêncio arrogante e do desprezo mesquinho. Aliás, não foram poucos os professores dessa escola que me aconselharam a jamais pedir desculpas e a nunca me dar ao trabalho de tentar emendar um soneto, por piores que sejam as rimas.

Justiça seja feita, nos últimos tempos o único intelectual brasileiro que ousou romper com esse acordo tácito do “não fala mal das minhas ideias que não falo mal das suas” foi Olavo de Carvalho. Que, para o bem ou para o mal, e com ou sem seus infames apelidos trocadilhescos, sempre foi generoso no debate com os oponentes.

O problema é que a falta de um confronto sadio de ideias, se por um lado ajuda os aspirantes ao posto de intelectual público a se firmarem nesse deserto é o pensamento brasileiro, por outro os limita tanto no pessoal quanto no profissional (ô, louco, meu!). No pessoal porque a validação automática de qualquer ideia leva inevitavelmente à prepotência – que nada mais é do que uma reação ao medo de ser desmascarado.

No profissional porque o discurso onanista interessa a poucos, e por pouco tempo. Por definição, é um discurso estéril. Enquanto um debate inteligente, uma polêmica daquelas com pê maiúsculo e trabalhado, uma controvérsia e até uma desavença pública têm esse óbvio poder de agregar multidõezinhas, nem que seja por morbidez intelectual, se é que isso existe. Não à toa, é do embate entre as precárias e quase sempre mancas tese e antítese que nasce, em todo o seu esplendor, a síntese.

Seitas de condescendência

Num processo semelhante ao da literatura, o debate público no Brasil se encastelou. E por dois motivos. O primeiro deles é que debater dá um trabalho danado. E dizem as más línguas por aí que, se a pessoa gosta de trabalhar, ela não pode ser intelectual.

Você tem que ler a réplica e repensar o que escreveu e reconhecer que aqui e ali suas ideias talvez não tenham ficado claras. E, se for o caso, pensar numa justificativa ou numa forma de reconhecer o erro sem parecer um “derrotado”. Ao longo desse processo, você corre o risco de descobrir que não é tão genial assim e que talvez haja um argumento melhor do que aquele que você vem repetindo há décadas e que até aqui lhe renderam aplausos, cargos, salários, honrarias e sei lá mais o quê.

O segundo tem a ver com generosidade E coragem. Reconhecer no outro um adversário digno é um ato de nobreza. Afinal, em qualquer embate você pode sair derrotado – e nem toda derrota é necessariamente humilhante. Além disso, é preciso coragem para se mostrar vulnerável e suscetível ao erro. Para reconhecer que, por um acaso neuronial, talvez a sua ideia “brilhante” que no nascedouro era tão promissora acabou se desvirtuando, se deixando levar por outras mais experientes e malandras, e agora está aí, toda refutada e jogada na rua da amargura.

Para o azar daqueles que, entre nós, curtem um bom duelo intelectual, infelizmente é assim, vivendo na realidade catastrófica das ideias ruins cercadas de silêncio e desprezo por todos os lados, que os intelectuais públicos vão construindo suas tribos, ou melhor, seitas de validação e condescendência.

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