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Quem acusa os outros de promover “discurso de ódio” pode reclamar quando um tuíte violento, ainda que satírico, provoca sua demissão?
Quem acusa os outros de promover “discurso de ódio” pode reclamar quando um tuíte violento, ainda que satírico, provoca sua demissão?| Foto: Rafael Andrade/ Wikipedia

“O brasileiro só será livre quando o último Lula da Silva for enforcado nas tripas do último ateu”. Você considera essa frase, evidentemente uma corruptela do discurso de ódio do abade francês Jean Meslier, um canalha que professava o catolicismo em público, mas defendia o ateísmo e o materialismo às escondidas, aceitável? Nem eu. Em que se pese a distância histórica entre nós e Meslier, a frase denota um desprezo absurdo pela vida humana.

E se alguém, na esperança de conquistar alguns coraçõezinhos e mentes para a seita do “ódio do bem”, trocar os personagens e cunhar a frase “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. Melhorou? Espero que não.

Pois foi exatamente essa a frase que o escritor João Paulo Cuenca publicou em sua conta no Twitter no dia 16 de junho de 2020. O tuíte foi posteriormente apagado. Não é a primeira vez que Cuenca expressa tamanha virulência para, quem sabe, conseguir um dia se firmar no debate público brasileiro, algo que ele tenta desesperadamente desde que foi incluído na malfadada Geração 00 da inexistente literatura brasileira contemporânea. Num arroubo revolucionário, em 2019 ele já tinha escrito que “a única solução pra esse arremedo de país é uma revolução comunista – e negra – que exproprie os meios de produção e mande esses vermes todos, junto aos oligarcas por trás deles, pra forca ou pra cortar cana num gulag”. O tuíte também foi apagado.

Por causa dessa frase, o escritor (?), que mantinha uma coluna quinzenal na Deutsche Welle Brasil, teve seu contrato rescindido. A justificativa foi a de que o tuíte de Cuenca contrariava os valores da publicação. “A Deutsche Welle repudia, naturalmente, qualquer tipo de discurso de ódio e incitação à violência. O direito universal à liberdade de imprensa e de expressão continua sendo defendido, evidentemente, mas ele não se aplica no caso de tais declarações”, afirmou a empresa por tuíte.

Como homem bem-relacionado entre a intelligentsia esquerdista, logo Cuenca viu várias pessoas se manifestarem em sua defesa. A tese geral é a de que a Deutsche Welle teria censurado o escritor. Que, ao ler o anúncio público da demissão, reagiu raivosamente, ameaçando a publicação de processo. “É desconcertante ver um veículo alemão caindo no jogo persecutório de elementos fascistas no Brasil e me perguntar se ele teria feito a mesma coisa em outros momentos da história da Alemanha”, escreveu Cuenca, usando a chamada “nazi card”.

A discussão se alongou por alguns tuítes mais, nos quais Cuenca choramingava dizendo que merecia o apoio da “imprensa pública alemã” e, com o estilo agressivo que lhe é característico, falando que à publicação falta “capacidade cognitiva” e coragem para resistir ao “bombardeamento dos defensores dos fascistas”. Sim, este é o nível da discussão.

Guerra sem sanguinho

Cuenca e seus amigos revolucionários que gostam de posar de jacobinos e que acham que estão travando uma guerra de verdade, mas sem sanguinho, ignoram a Lei da Pureza que rege todas as revoluções. Foi Roger Scruton, que eles obviamente ignoram, quem escreveu longamente sobre a ortodoxia dessa esquerda puritana, que cerceia as palavras alheias (sempre repulsivas) na esperança de ver sua palavra (sempre pura, elevada, altruísta e sábia) triunfar. Sem perceber, portanto, que na busca por uma pureza impossível acabarão todos consumidos pelas próprias “virtudes”.

Em outros tempos, a justificativa de Cuenca para ter se expressado com essa frase específica seria (seria!) bastante plausível. Afinal, trata-se da apropriação de uma frase de quase três séculos, usada em diversas ocasiões para demonstrar uma insatisfação com as “classes dominantes”. É baixa e violenta, sim. Mas é de uma vilania tão explícita e tosca que é impossível levá-la a sério como ameaça. O problema, mais uma vez, é de coerência. Quem exige dos adversários (que trata como inimigos) pureza ideológica na hora de se expressar não pode pressupor que esses mesmos adversários interpretarão qualquer discurso mais virulento com generosidade ou até mesmo humor.

A demissão, a repercussão do caso e sobretudo a exposição de uma forma de pensar que há muito abandonou qualquer pretensão de coerência e sanidade não ensinaram nada a Cuenca e aos que reclamam que o revolucionário das redes sociais teria sido vítima de censura. “Essas criaturas subhumanas (sic) podem grunhir, mas já perderam. Não devemos recuar NADA”, escreveu Cuenca assim que a poeira baixou. Mostrando, mais uma vez, que o chavão às vezes serve para abrir portas grandes mesmo e que o estilo definitivamente faz o homem.

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