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Na busca por um diálogo com os raros leitores interessados, escritores se alistam nas fileiras da guerra cultural.
Na busca por um diálogo com os raros leitores interessados, escritores se alistam nas fileiras da guerra cultural.| Foto: Pixabay

Estava aqui me preparando para falar do romance Intolerância, de Rafael Ruiz. A ideia era correlacionar o livro, que fala da disputa pelo poder de controlar a realidade por meio da linguagem, com o caso recente envolvendo a historiadora Lilia Schwarcz. Depois de querer bancar a formadora de opinião socialmente esclarecida, fracassar e sofrer linchamento virtual, ela pediu desculpas aos militantes num dos textos mais vergonhosos da história intelectual brasileira.

Mas aí me dei conta de três coisas importantes – e, por que não?, tristes. A primeira é a de que as pessoas ditas intelectualizadas, hoje mais do que nunca, não estão interessados em literatura. As estantes onipresentes nas lives de jornalistas e até dos leitores mais improváveis, os políticos, são apenas cenários. O próprio livro, enquanto objeto, é cenário de uma impostura. Hoje têm mais valor a capa dura e a encadernação e o design do miolo do que a história, os personagens e aquela metáfora cuidadosa e sutilmente construída.

A segunda é que mesmo os poucos que ainda se interessam por ficção muitas vezes não dispõem dos instrumentos mais básicos para interpretar um texto minimamente complexo. E a terceira é a de que a ficção contemporânea, na esperança ou desespero que estabelecer algum diálogo com esses leitores desinteressados ou despreparados, passa por um processo de croniquificação cuja consequência desconheço, embora ouse especular.

Ninguém se interessa por literatura

A primeira constatação, reconheço, não é brilhante nem nova, embora seja um tanto quanto deprimente. Faz tempo que ninguém se interessa por literatura no Brasil – se é que um dia as pessoas se interessaram de fato. Embora seja comum ouvir pessoas cheias de nostalgia falando de um tempo de livrarias lotadas de bons títulos vendidos às baciadas, cada vez mais tenho a impressão de que essa imagem é falsa. Afinal, o decadentismo, a “saudade do que não vivi”, é também uma válvula de escape para quem olha em volta e se depara com esse semiárido de ideias.

Aqui, contudo, faço essa constatação sem ressentimento algum. Aí está a realidade e a realidade é que a literatura perdeu espaço para outras formas de entretenimento e reflexão. Do cinema ao mangá, mesmo os mais esclarecidos se veem na confortável posição de abdicar da literatura sem maiores prejuízos. Pelo menos é nisso que eles acreditam.

O desinteresse das pessoas por literatura, vale dizer ainda, não tem nada a ver com o desinteresse das pessoas pelos livros. Bem pelo contrário. O livro é um objeto quase místico, uma espécie de contêiner de saber e, no caso da ficção, até de beleza. E as pessoas adoram acumular livros e mostrar os livros na estante e dar e receber livros de presente. Daí a se importar com o que aquele monte de letrinhas espalhadas pelas páginas diz são outros quinhentos.

Agora, se você me perguntar por que as pessoas não se interessam por literatura, principalmente pela literatura brasileira contemporânea, bom, aí eu teria de rebolar um bocado para responder à pergunta num espaço tão exíguo e sem que o leitor tivesse um ataque de narcolepsia. Talvez outra hora eu aborde isso. Só vou dizer, na esperança de colocar uma pulga atrás de sua orelha, que não tem nada a ver com o fato de a professora chata da 7ª série obrigá-lo a ler Machado de Assis, e não Harry Potter.

Aliás, talvez seja justamente o contrário disso.

Paulofreirização do leitor em potencial

Não sei se você viu (espero que sim), mas recentemente escrevi um texto claramente fictício em que um ministro do STF censura perfis de militantes antibolsonaristas nas redes sociais. Não é uma obra-prima nem nada – até porque o texto jamais se pretendeu a isso. A ideia era só criar um universo paralelo de assimilação rápida e, assim, fazer com que o leitor pensasse no efeito que as medidas autoritárias do STF teriam se elas atingissem “o outro lado”. E, se no processo o leitor der umas risadas, uau, sou o homem mais feliz do mundo.

Para minha surpresa, contudo, e apesar de um asterisco estrategicamente colocado no título para que as pessoas percebessem se tratar de ficção, muitos leitores levaram a ficção escancarada e até vulgarmente explícita (desculpe) a sério. O que me levou a questionar minha capacidade de me fazer entendido e, depois, a questionar a capacidade dos leitores de, por um instante apenas, fugirem do mundo muito real e encontrarem refúgio na imaginação.

Até onde entendo, para que a literatura se faça relevante um dia, é necessário que o leitor busque o questionamento e se faça vulnerável diante de um possível contraditório. Como ensina bem Mortimer Adler em seu Como Ler Livros e, mais recentemente, Alan Jacobs no obrigatório Como Pensar: um Guia de Sobrevivência Para um Mundo em Desacordo, ler exige sacrifício. Mas como conseguir isso de uma plateia que prefere o afago da confirmação ao trabalho incômodo da reflexão? Como conseguir falar se o público, no caso o leitor, não faz nenhuma questão de ouvir?

Outra coisa necessária para que a literatura um dia possa vir a ser fonte de algo proveitoso para o indivíduo e a sociedade em geral é a instrumentalização adequada do leitor. Sem que ele tenha capacidade de enxergar beleza numa frase ou de rir de uma referência mais ou menos obscura, o texto literário, por melhor que ele seja, não terá jamais valor algum.

E este deveria ser, mas não é, o maior dilema enfrentado por escritores hoje em dia: como alcançar de maneira eficaz e esteticamente bela um leitor formado pela escola paulofreiriana de estupidez? Em vez disso, escritores se digladiam por elogios e pelo cachê para participar de festas literárias que acompanha o prestígio intelectual e esteticamente estéril.

Croniquificação do romance

O que Intolerância tem em comum com o também ótimo Os Dias da Crise, de Jerônimo Teixeira, com alguns romances recentes de Cristóvão Tezza, com O Anônimo Célebre, de Ignácio Loyola Brandão e com toda a obra de Michel Houellebecq? Todos sofrem de um fenômeno que chamo de croniquificação do romance. São livros feitos para serem consumidos no calor dos acontecimentos, por assim dizer.

Embora numa crítica bem antiga ao livro (fraco) de Ignácio de Loyola Brandão eu aponte isso como um defeito e embora minha tentativa recente de reler Plataforma, de Michel Houellebecq, tenha sido frustrante, não é um fenômeno condenável per se. É compreensível a busca por um diálogo com esse raro leitor que, massacrado diariamente por manchetes de corrupção, atentados terroristas, quer se ver inserido num contexto mais amplo, mais profundo e mais perene.

A croniquificação do romance também satisfaz a necessidade de se ver a literatura inserida na já mítica “guerra cultural”. E de conferir aos dissabores enfrentados por quem não compartilha da nova ortodoxia um quê de heróico – no sentido mais imortal da palavra. É assim com Desonra, de J. M. Coetzee, e também com a fantasia antiliberal de O Homem Duplicado, de José Saramago.

É o que dá prazer à leitura de Intolerância. A sensação de fazer parte de algo para sempre marcado na história da Humanidade. De estar cercado com eventos determinados para o destino da Civilização Ocidental. De ser um pouco herói no conflito cotidiano de ideias.

Só não sei quão ilusória é essa sensação.

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