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Livro de Mandetta é uma prova da ineficiência do Estado, das limitações e da vaidade sem fim dos homens públicos.
Livro de Mandetta é uma prova da ineficiência do Estado, das limitações e da vaidade sem fim dos homens públicos.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O ex-ministro da saúde e ortopedista pediátrico Luiz Henrique Mandetta vai estrear na literatura com “Um Paciente Chamado Brasil”. Nas 228 páginas do livro escrito e publicado às pressas, enquanto ainda é possível tirar algum proveito da pandemia de Covid-19, Mandetta promete contar os bastidores da luta contra o coronavírus.

Como o livro será lançado no dia 8 de outubro e neste dia, se tudo der certo, estarei praticando stand up paddle em alguma ilha de Bora Bora (não sem antes dar uma passadinha em Nauru), ficarei devendo ao leitor uma análise mais detida sobre esse trabalho que já tem seu lugar reservado no panteão das maiores obras da Literatura de Gabinete do nosso tempo – ao lado da involuntariamente hilária autobiografia do ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot.

Num esforço de reportagem, usei todos os meus dotes de hacker e andei pelos becos mais sujos e escuros que você pode imaginar na deep web para encontrar uma cópia de “Um Paciente Chamado Brasil”. Sem sucesso. Só me resta, pois, analisar o livro pela capa, pela sinopse e pelas primeiras páginas disponibilizadas como aperitivo pela Amazon. Anos de experiência no mercado editorial me qualificaram para, em casos bastante específicos, usar apenas essas três ferramentas para prever o que algum desavisado poderia chamar de “conteúdo”.

Pois a capa minimalista de “Um Paciente Chamado Brasil” (um título de criatividade mais escassa do que esparadrapo no SUS) é toda em azul, com apenas uma linha vermelha ascendente. Supostamente a linha mostra os casos de Covid-19 no Brasil depois que Mandetta foi demitido. Ou vai ver ela foi tirada de um daqueles gráficos que mostrava a ascensão de Fernando Haddad nas pesquisas eleitorais de 2018. A linha pode ainda fazer referência ao ECG contínuo nos monitores de UTI que indicam se o paciente tem ou não batimentos cardíacos. A julgar pela capa, pois, o paciente vai bem, obrigado.

E aí temos a sinopse. Fico imaginando como seria o mesmo texto caso o presidente Jair Bolsonaro não tivesse demitido o então ministro da Saúde. Se Mandetta até hoje estivesse administrando a pandemia. Aí seguramente desapareceria o tom quase que de beatificação, substituído por um tom crítico, duro, contundente, quando não francamente agressivo. Talvez um redator todo indignado até escrevesse a palavra “genocida” ali.

Pois a sinopse, no tom cartorário-eleitoral que sem querer mostra no que se transformou o mercado editorial brasileiro, começa dizendo que “Sua [do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta] defesa dos protocolos científicos no combate à pandemia e a transparência na comunicação com a sociedade acabaram desencadeando uma crise no governo federal”. Por “protocolos científicos” o redator está se referindo ao lockdown que em nenhum país do mundo se mostrou eficiente? E será que “transparência na comunicação” é uma referência às coletivas catastrofistas, mas com o inegável sorriso de candidato a qualquer coisa do ex-ministro?

O restante da sinopse prova que o livro entrega o que se espera dele mesmo: política disfarçada de jornada do herói ou coisa parecida. Tem lugar até para um “os cerca de cem dias” - o que leva a crer que precisão numérica não é o forte da narrativa. E, como não poderia deixar de ser, a sinopse diz o livro contará como Mandetta, munido de “ciência, ciência, ciência”, enfrentou a política, “a questão da cloroquina, o isolamento social e o negacionismo do presidente da República”.

Como a “questão da cloroquina” não é ponto pacífico na comunidade científica e “negacionismo” é só uma palavra inventada para hostilizar os que não seguem a ortodoxia da vez, deposito minhas esperanças no que o livro promete em seguida, ainda de acordo com a sinopse: “os caminhos da compra e distribuição de insumos para profissionais da saúde e hospitais”. Para os guarda-livros (!), deve ser uma leitura interessantíssima.

Pela a amostra que a Amazon me permite degustar, o livro começa com uma frase enigmática logo na introdução: “Minha vida é marcada pela luta contra a morte, em sintonia com a vida – compreendi esse caminho desde muito cedo”. Eu li e reli. Li para meu editor, para minha mulher, desci e li para o porteiro e, não satisfeito, mandei a frase para um grupo de médicos para que eles me explicassem. Ninguém entendeu o que Mandetta quis dizer com isso. (Se você entendeu, sinta-se à vontade para explicar).

Logo adiante, um Mandetta que parece um James Bond em Davos narra os primórdios da pandemia e até como agentes de segurança fizeram uma varredura em seu hotel em busca de explosivos. Porque todo livro tem que ter esse tipo de tensão, não é mesmo? Há ainda, logo nas primeiras páginas, rapapés à Organização Mundial da Saúde, uma sequência de nomes de burocratas desconhecidos, cifras que não dizem nada, o deslumbramento diante da possibilidade de um sul-mato-grossense se encontrar com o casal Bill e Melinda Gates, frases como “pessoas não são mercadorias” e lições como esta pérola: “(...) a Davos da empresa tradicional, do banqueiro, do capitalismo convencional que a gente conhece está tendo que conviver com uma nova geração com outros valores e competências. E esses dois mundos não dialogam, estão em momentos muito díspares”.

Mandetta quer que você sinta saudade dele. Quer que você o veja como o homem que poderia ter poupado o Brasil da tragédia do coronavírus – ainda que nenhum outro país do mundo tenha conseguido isso. E, para tanto, Mandetta escreveu um livro (ou melhor, narrou suas peripécias pelos corredores da burocracia médica mundial ao repórter da Folha de S. Paulo Walter Nunes). Sem querer, contudo, seu testemunho é uma prova da ineficiência do Estado, das limitações e da vaidade sem fim dos homens públicos.

Há quem goste. Eu prefiro ler bula de hidroxicloroquina.

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